5 de dezembro de 2024

Vênus Noire : descolonizar-se é preciso!

 Vênus Noire é um filme que dói. Baseado na biografia de Saartjie Baartman: nascida no final dos anos 1780, na comunidade Khoisan, na África do Sul. Perdeu a mãe ainda criança e, na adolescência, perdeu o pai e o irmão. A comunidade onde Saartjie vivia foi atacada pelos colonizadores holandeses, e ela foi feita escrava.


Em 1810, o médico inglês William Dunlop conheceu Saartjie e interessou-se pelas suas formas corporais: nádegas e seios grandes e genitália externa (tipo físico conhecido como "Vênus Hotentote"). Dunlop convenceu o proprietário de Saartjie a permitir que ele a levasse para a Europa, onde ela seria objeto de estudos científicos devido ao seu corpo incomum.

Porém, Saartjie foi levada a Londres, onde foi colocada em exposição como objeto exótico. Ela permanecia semi-nua, realizava algumas danças, e em seguida o público era convidado por Dunlop a tocá-la nas nádegas e nos seios. Alguns espectadores a cutucavam com uma vara.

O show de horrores de Dunlop revoltou um grupo de abolicionistas, que levou Dunlop ao tribunal, alegando que ele mantinha Saartjie em cativeiro contra a vontade dela. Saartjie testemunhou a favor de Dunlop no tribunal, alegando que era apenas uma mulher tentando ganhar um salário honesto. O caso foi arquivado.

A polêmica popularizou a exposição, e a "Vênus Hotentote" foi levada a Paris, onde foi vendida para um domador de animais. Além de ser exposta como "animal exótico", seu corpo foi usado em "pesquisas científicas".



Quando o público e os cientistas perderam o interesse por ela, seu dono a obrigou a se prostituir. Saartjie morreu em 1815, aos 25 anos, vítima de sífilis. Seu corpo foi vendido para o Museu de História Natural de Paris, onde foi dissecado e empalhado, permanecendo em exposição por muitos anos. Posteriormente, o corpo foi substituído por um molde de gesso.

Em uma época em que os corpos das mulheres brancas eram escondidos por camadas e camadas de roupas, os corpos das mulheres não brancas e das classes subalternas estavam sujeitos à "apreciação" pública, bem como à exploração sexual. O caso de Saartjie é paradigmático da objetificação a que eram submetidos os corpos das mulheres de grupos humanos escravizados e colonizados.

Retratadas pelos evolucionistas como figuras zoomórficas, "aberrações" que confirmavam o progresso do "tipo europeu" em relação aos demais tipos humanos, esses corpos eram utilizados para demarcar as diferenças raciais e evolucionárias.

Há quem pense que essa sociedade, que tratava as mulheres negras como "bichos exóticos", foi totalmente superada, que vivemos outros tempos. No entanto, inúmeros exemplos contemporâneos demonstram o contrário. Ainda hoje, as mulheres negras colhem os frutos desse pensamento, sendo constrangidas a se enquadrar nos estereótipos de "corpo exótico" ou a lutar arduamente para superar a desumanização produzida por esses estereótipos e a exploração de seus corpos.

A história de Saartjie foi retratada no filme Vênus Noire.


Filme completo (legendado)


 Em 1994, após o fim do apartheid e a eleição como presidente de Nelson Mandela, iniciou-se um processo de reparação histórica, que incluiu a restituição dos corpos de figuras históricas que haviam sido desrespeitadas e desumanizadas durante o período colonial. Baartman foi uma dessas figuras, cujo corpo, após sua morte em 1815, foi dissecado e exibido no Museu de História Natural de Paris.

A campanha para trazer o corpo de Baartman de volta à África do Sul começou a ganhar força no período pós-apartheid, com o governo de Mandela buscando restaurar a dignidade da mulher que foi vítima de uma das formas mais humilhantes de exploração e racismo colonial. Em 2002, após anos de negociações e esforços diplomáticos, o governo francês concordou em devolver os restos mortais de Saartjie Baartman à África do Sul. Ela foi finalmente enterrada em 2002, em sua cidade natal, Hankey, com um funeral que reconheceu sua dignidade como ser humano.

O pedido de Mandela para que o corpo de Saartjie Baartman fosse devolvido à África do Sul simbolizou um esforço mais amplo de reconciliação e reparação das injustiças históricas, além de ser um ato de resistência contra as narrativas colonialistas que haviam objetificado e desumanizado os corpos negros, especialmente o corpo feminino.


Proposta de atividade a partir do filme:

Como Frantz Fanon destacou: o colonialismo desumaniza os sujeitos colonizados, transformando-os em objetos de exploração, e argumentou que a revolução anticolonial é necessária para reumanizá-los. O filme mostra claramente essa desumanização, desde a objetificação do corpo de Saartjie até sua exibição como "aberração".

Que tal organizar uma sessão de apresentação do filme e discussão das ideias de Fanon?
Entre os  temas que podem serem debatidos estão:
  • Como o colonialismo transformou sujeitos colonizados em objetos de exploração.
  • A desumanização de Saartjie Baartman.
  • A resistência negra e reumanização possíveis em contextos de opressão.
  • Como as dinâmicas coloniais ainda impactam a sociedade contemporânea.

  • Metodologia:

    1) Iniciar com uma breve introdução sobre Frantz Fanon e sua crítica ao colonialismo, explicando conceitos como desumanização e a necessidade de resistência anticolonial.
    Frantz Fanon (1925-1961) foi um psiquiatra, filósofo e militante anticolonial martinicano, conhecido por suas análises profundas sobre os impactos psicológicos, sociais e culturais do colonialismo. Em obras como "Pele Negra, Máscaras Brancas" e "Os Condenados da Terra", Fanon analisa como o colonialismo explora territórios e recursos, ao mesmo tempo em que desumaniza os povos colonizados, reduzindo-os a objetos de dominação. Estabelecendo as bases para compreender conceitos como:

  • Racismo estrutural: Um sistema que naturaliza a inferioridade dos colonizados.
  • Violência simbólica e física: Imposição de línguas, culturas e narrativas que negam as identidades nativas.
  • Internalização da inferioridade: O colonizado, muitas vezes, absorve o discurso do colonizador, sentindo-se inferior e aspirando aos valores do opressor.

  • 2) Contextualizar a história de Saartjie Baartman, destacando como ela representa o extremo da exploração colonial.

    3) Exibir trechos selecionados do filme Vênus Noire (30 minutos): 
    selecionar cenas que evidenciem a objetificação do corpo de Saartjie e a violência simbólica a que foi submetida.

    4) Debate inicial (10 minutos): 

    Perguntar
    • Como o filme representa a desumanização de Saartjie?
    • Que elementos do colonialismo aparecem nas cenas?
    • É possível identificar formas de resistência, mesmo que sutis, na história de Saartjie?

    5) Análise Crítica e Propostas de Reumanização: Discussão em pequenos grupos (15 minutos):

    • Dividir os estudantes em grupos e fornecer as seguintes perguntas para discussão:
    • Como o colonialismo impacta a percepção do corpo e da identidade de Saartjie no filme?
    • Como  Fanon  analisaria a história de Saartjie?
    • Que práticas de resistência poderiam ter sido possíveis no contexto dela?
    6) Exposição dos grupos (15 minutos):
    • Cada grupo apresenta suas reflexões em plenária.
    7) Atividade de reconstrução histórica (15 minutos):
    • Pedir aos estudantes que criem uma narrativa alternativa para Saartjie Baartman, focando em sua reumanização e resistências possíveis.
    • Exemplo: Escrever uma carta em primeira pessoa como se Saartjie tivesse tido a oportunidade de contar sua própria história.

    Ficha Técnica de "Vênus Noire" (2010)

    • Título Original: Vênus Noire
    • Direção: Abdellatif Kechiche
    • Roteiro: Abdellatif Kechiche, Ghalia Lacroix
    • Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta, Véronique Cayla
    • Produção Executiva: Eric Lagesse
    • Fotografia: Sofian El Fani
    • Montagem: Lise Beaulieu
    • Música: Khyam Allami
    • Direção de Arte: Jérémie Duchier
    • Figurino: Dorothée Guiraud
    • Cenografia: Gwendal Lebar
    • Distribuição: Pyramide Distribution (França)
    • Gênero: Drama histórico
    • Ano de Lançamento: 2010
    • Duração: 159 minutos
    • Idioma: Francês
    • Países: França, Bélgica
    • Elenco Principal:
      • Yamina Benguigui (como Saartjie Baartman)
      • Olivier Gourmet (como o médico Dr. Dunlop)
      • Isabelle Sadoyan (como Madame de la Duree)
      • François Négret (como Lous)
      • Andre Jacobs (como Petrus)

    Sinopse:

    "Vênus Noire" é uma dramatização da vida de Saartjie Baartman, uma mulher Khoikhoi que foi levada para a Europa no início do século XIX e exibida como uma "aberração" devido às suas características físicas. O filme descreve o sofrimento e a exploração que Baartman enfrentou, sendo tratada como um objeto de curiosidade racial e sexual. Através da narrativa intensa e emocional, o filme aborda a objetificação do corpo feminino negro e as humilhações que ela sofreu em sua vida e após sua morte.

    Prêmios e Indicações:

    • Festival de Cinema de Veneza (2010): Indicado ao Leão de Ouro.
    • Prêmios César (2011): Indicado a Melhor Filme e Melhor Atriz para Yamina Benguigui.
    Bibliografia 
    • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Heloísa P. A. Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008. Dispinível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/8269273/mod_resource/content/1/FANON_PELES%20NEGRAS%20MASCARAS%20BRANCAS.pdf 

    • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Mario Cláudio. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008. Disponível em: https://afrocentricidade.wordpress.com/wp-content/uploads/2012/06/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.pdf 

    • Frantz Omar Fanon (1925-1961). Fanon, Frantz Omar. Racismo e cultura. Editora Terra sem Amos: Brasil, 2021.

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