29 de março de 2012

Os clérigos que não amavam as mulheres

A cruzada do bispo de Guarulhos, Luiz Gonzaga Bergonzini, contra o aborto legal continua. Ano passado, o clérigo indignou os movimentos feministas e de direitos humanos ao afirmar que a maioria das mulheres mente que foram estupradas para conseguir realizar o aborto legal, agora Luiz Gonzaga encabeça a campanha pela instalação da CPI do Aborto.
O objetivo dos organizadores do protesto pela chamada CPI da verdade sobre o Aborto (realizada no último 21 de março) era promover uma mega passeata contra o aborto legal, previsto para os casos de risco de vida da gestante, malformação fetal e estupro. O séquito do bispo da CPI do aborto pretendia dar uma demonstração de força, revivendo (48 anos depois) a Marcha da Família com Deus pela Liberdade ocorrida em 20 de março de 1964. Ocasião na qual as alas conservadoras da igreja católica reuniram 500 mil pessoas na Praça da Sé (SP), na manifestação de apoio ao golpe de 1964, que inaugurou a ditadura militar, a qual, contrariando o mandamento “não matará”, torturou e matou centenas de militantes políticos nos longos anos da ditadura no Brasil.
Embora os defensores da CPI do Aborto discursem contra os abortos realizados em caso de risco de vida das gestantes e malformação fetal o alvo preferencial deles são as vítimas de estupro. Veja o que diz o bispo de Guarulhos:
—"Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima... É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil".
—"Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre... Há os casos em que não é bem violência... A mulher diz não queria, não queria, mas aconteceu...”
Para convencer o repórter que o entrevistava de que “não há estupro sem consentimento” bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres.
—"Eu falava: bota aqui", pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe.
— "Entendeu, né? Tem casos assim. Não queria, não queria, mas acabei deixando.O BO é para não facilitar o aborto."



Estas declarações do bispo de Guarulhos reforçam a minha tese:
"Quando uma mulher é estuprada todos (homens e mulheres, indivíduos e instituições) que corroboram com o sexismo são cúmplices do estuprador".
Em geral, a sociedade retrata os estupradores como lobos solitários que espreitam suas vítimas até conseguir atacá-las. Complementando essa metáfora temos os adjetivos usualmente empregados para desqualificá-los: “animais”, “monstros”, entre outros termos que desumanizam esta odiosa figura. Ocorre que os estupradores são seres sociais e seus atos violentos são motivados muito mais pela cultura sexista na qual foram socializados do que pelos impulsos e instintos bestiais. Portanto, se queremos entender as origens e as causas da violência sexual devemos procurá-las na sociedade e não na massa encefálica dos estupradores; nos discursos como o de Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, que defende que estupro é uma modalidade de sexo. Santa ignorância, então ele não sabe que violência sexual (contra mulheres e crianças) não tem a ver com sexo, mas com dominação e com a vontade de infligir sofrimento e humilhação ao outro?
No estupro o sexo é um meio e não um fim, meio empregado para anular o domínio da vítima sobre o próprio corpo, para exercer o controle absoluto sobre o outro (seu corpo, sua sexualidade e sua vida). Eis que chegamos à constatação [bizarra e até óbvia] de que clérigos e estupradores querem a mesma coisa: sujeitar e exercer o controle sobre o corpo, sexualidade e a vida das mulheres. Estão aí a censura  ao uso dos métodos anticoncepcionais, da Pílula do Dia Seguinte, da camisinha e ao aborto para comprovar. Nesse sentido, qualquer dispositivo ou prática que expresse e favoreça o controle da mulher sobre o próprio corpo, sexualidade, fertilidade e existência são reprovados.
As mulheres estupradas, as gestantes que correm risco de morte ou geram fetos anencéfalos adquirem um direito que graças a influência da Igreja sobre o estado brasileiro é negado a todas as outras: o direito de decidir pela interrupção da gravidez. Nos últimos anos elas têm sido os alvos da igreja.
Em 2009, a igreja católica excomungou uma menina 9 anos, 1,33m de altura e 36kg , por ter recorrido ao direito de aborto previsto em lei. A gravidez de gêmeos era resultado do estupro recorrente que a criança sofria por parte de seu padrasto, desde que tinha 6 anos. Nesse caso, o aborto obedecia duas prerrogativas: além de a gravidez ser fruto de um estupro, a criança corria risco de morrer se levasse a gestação adiante. O arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a criança, sua mãe e os médicos envolvidos no procedimento.
Este caso e as recentes tentativas de criar uma CPI do aborto revelam que os clérigos agem no sentido de exercer o controle irrestrito sobre os corpos de todas as brasileiras, daí a tentativa de acabar com as exceções. O governo brasileiro tem favorecido, em boa medida,  este projeto, ao adotar políticas como a MP 557, que institui o cadastramento compulsório e universal sob o argumento de garantir os “direitos do embrião/feto”. Na tentativa de cooptar os setores conservadores, o Palácio do Planalto faz a corte aos clérigos, presenteando-os com restrições ao bocadinho de direitos de que gozam as cidadãs brasileiras. Ao invés de investir na melhoria da saúde pública, em especial, nos programas de saúde da mulher,  institui mecanismos de monitoramento e controle que atentam contra autonomia destas, a exemplo da MP 557 cuja concepção [filo-religiosa] reduz e submete o corpo, a sexualidade, a vida e saúde das mulher à procriação.
O objeto da MP 557 é a mulher-chocadeira promovida e promulgada pela igreja católica. Ela, a mulher-chocadeira, não tem e não deve ter direito de fazer aborto, mesmo quando corre risco de vida ou foi estuprada. Seu corpo não lhe pertence é objeto controlado pelo estado, a igreja e os homens. 


O controle sobre  o corpo feminino é o índice da desigualdade de gênero: mais controle  significa menos  direitos sociais  e  autonomia; quanto mais vuneráveis ao controle da Igreja e do estado estiverem as mulheres,  mais vuneráveis elas estarão  às várias formas de violência.