5 de dezembro de 2024

Vênus Noire : descolonizar-se é preciso!

 Vênus Noire é um filme que dói. Baseado na biografia de Saartjie Baartman: nascida no final dos anos 1780, na comunidade Khoisan, na África do Sul. Perdeu a mãe ainda criança e, na adolescência, perdeu o pai e o irmão. A comunidade onde Saartjie vivia foi atacada pelos colonizadores holandeses, e ela foi feita escrava.


Em 1810, o médico inglês William Dunlop conheceu Saartjie e interessou-se pelas suas formas corporais: nádegas e seios grandes e genitália externa (tipo físico conhecido como "Vênus Hotentote"). Dunlop convenceu o proprietário de Saartjie a permitir que ele a levasse para a Europa, onde ela seria objeto de estudos científicos devido ao seu corpo incomum.

Porém, Saartjie foi levada a Londres, onde foi colocada em exposição como objeto exótico. Ela permanecia semi-nua, realizava algumas danças, e em seguida o público era convidado por Dunlop a tocá-la nas nádegas e nos seios. Alguns espectadores a cutucavam com uma vara.

O show de horrores de Dunlop revoltou um grupo de abolicionistas, que levou Dunlop ao tribunal, alegando que ele mantinha Saartjie em cativeiro contra a vontade dela. Saartjie testemunhou a favor de Dunlop no tribunal, alegando que era apenas uma mulher tentando ganhar um salário honesto. O caso foi arquivado.

A polêmica popularizou a exposição, e a "Vênus Hotentote" foi levada a Paris, onde foi vendida para um domador de animais. Além de ser exposta como "animal exótico", seu corpo foi usado em "pesquisas científicas".



Quando o público e os cientistas perderam o interesse por ela, seu dono a obrigou a se prostituir. Saartjie morreu em 1815, aos 25 anos, vítima de sífilis. Seu corpo foi vendido para o Museu de História Natural de Paris, onde foi dissecado e empalhado, permanecendo em exposição por muitos anos. Posteriormente, o corpo foi substituído por um molde de gesso.

Em uma época em que os corpos das mulheres brancas eram escondidos por camadas e camadas de roupas, os corpos das mulheres não brancas e das classes subalternas estavam sujeitos à "apreciação" pública, bem como à exploração sexual. O caso de Saartjie é paradigmático da objetificação a que eram submetidos os corpos das mulheres de grupos humanos escravizados e colonizados.

Retratadas pelos evolucionistas como figuras zoomórficas, "aberrações" que confirmavam o progresso do "tipo europeu" em relação aos demais tipos humanos, esses corpos eram utilizados para demarcar as diferenças raciais e evolucionárias.

Há quem pense que essa sociedade, que tratava as mulheres negras como "bichos exóticos", foi totalmente superada, que vivemos outros tempos. No entanto, inúmeros exemplos contemporâneos demonstram o contrário. Ainda hoje, as mulheres negras colhem os frutos desse pensamento, sendo constrangidas a se enquadrar nos estereótipos de "corpo exótico" ou a lutar arduamente para superar a desumanização produzida por esses estereótipos e a exploração de seus corpos.

A história de Saartjie foi retratada no filme Vênus Noire.


Filme completo (legendado)


 Em 1994, após o fim do apartheid e a eleição como presidente de Nelson Mandela, iniciou-se um processo de reparação histórica, que incluiu a restituição dos corpos de figuras históricas que haviam sido desrespeitadas e desumanizadas durante o período colonial. Baartman foi uma dessas figuras, cujo corpo, após sua morte em 1815, foi dissecado e exibido no Museu de História Natural de Paris.

A campanha para trazer o corpo de Baartman de volta à África do Sul começou a ganhar força no período pós-apartheid, com o governo de Mandela buscando restaurar a dignidade da mulher que foi vítima de uma das formas mais humilhantes de exploração e racismo colonial. Em 2002, após anos de negociações e esforços diplomáticos, o governo francês concordou em devolver os restos mortais de Saartjie Baartman à África do Sul. Ela foi finalmente enterrada em 2002, em sua cidade natal, Hankey, com um funeral que reconheceu sua dignidade como ser humano.

O pedido de Mandela para que o corpo de Saartjie Baartman fosse devolvido à África do Sul simbolizou um esforço mais amplo de reconciliação e reparação das injustiças históricas, além de ser um ato de resistência contra as narrativas colonialistas que haviam objetificado e desumanizado os corpos negros, especialmente o corpo feminino.


Proposta de atividade a partir do filme:

Como Frantz Fanon destacou: o colonialismo desumaniza os sujeitos colonizados, transformando-os em objetos de exploração, e argumentou que a revolução anticolonial é necessária para reumanizá-los. O filme mostra claramente essa desumanização, desde a objetificação do corpo de Saartjie até sua exibição como "aberração".

Que tal organizar uma sessão de apresentação do filme e discussão das ideias de Fanon?
Entre os  temas que podem serem debatidos estão:
  • Como o colonialismo transformou sujeitos colonizados em objetos de exploração.
  • A desumanização de Saartjie Baartman.
  • A resistência negra e reumanização possíveis em contextos de opressão.
  • Como as dinâmicas coloniais ainda impactam a sociedade contemporânea.

  • Metodologia:

    1) Iniciar com uma breve introdução sobre Frantz Fanon e sua crítica ao colonialismo, explicando conceitos como desumanização e a necessidade de resistência anticolonial.
    Frantz Fanon (1925-1961) foi um psiquiatra, filósofo e militante anticolonial martinicano, conhecido por suas análises profundas sobre os impactos psicológicos, sociais e culturais do colonialismo. Em obras como "Pele Negra, Máscaras Brancas" e "Os Condenados da Terra", Fanon analisa como o colonialismo explora territórios e recursos, ao mesmo tempo em que desumaniza os povos colonizados, reduzindo-os a objetos de dominação. Estabelecendo as bases para compreender conceitos como:

  • Racismo estrutural: Um sistema que naturaliza a inferioridade dos colonizados.
  • Violência simbólica e física: Imposição de línguas, culturas e narrativas que negam as identidades nativas.
  • Internalização da inferioridade: O colonizado, muitas vezes, absorve o discurso do colonizador, sentindo-se inferior e aspirando aos valores do opressor.

  • 2) Contextualizar a história de Saartjie Baartman, destacando como ela representa o extremo da exploração colonial.

    3) Exibir trechos selecionados do filme Vênus Noire (30 minutos): 
    selecionar cenas que evidenciem a objetificação do corpo de Saartjie e a violência simbólica a que foi submetida.

    4) Debate inicial (10 minutos): 

    Perguntar
    • Como o filme representa a desumanização de Saartjie?
    • Que elementos do colonialismo aparecem nas cenas?
    • É possível identificar formas de resistência, mesmo que sutis, na história de Saartjie?

    5) Análise Crítica e Propostas de Reumanização: Discussão em pequenos grupos (15 minutos):

    • Dividir os estudantes em grupos e fornecer as seguintes perguntas para discussão:
    • Como o colonialismo impacta a percepção do corpo e da identidade de Saartjie no filme?
    • Como  Fanon  analisaria a história de Saartjie?
    • Que práticas de resistência poderiam ter sido possíveis no contexto dela?
    6) Exposição dos grupos (15 minutos):
    • Cada grupo apresenta suas reflexões em plenária.
    7) Atividade de reconstrução histórica (15 minutos):
    • Pedir aos estudantes que criem uma narrativa alternativa para Saartjie Baartman, focando em sua reumanização e resistências possíveis.
    • Exemplo: Escrever uma carta em primeira pessoa como se Saartjie tivesse tido a oportunidade de contar sua própria história.

    Ficha Técnica de "Vênus Noire" (2010)

    • Título Original: Vênus Noire
    • Direção: Abdellatif Kechiche
    • Roteiro: Abdellatif Kechiche, Ghalia Lacroix
    • Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta, Véronique Cayla
    • Produção Executiva: Eric Lagesse
    • Fotografia: Sofian El Fani
    • Montagem: Lise Beaulieu
    • Música: Khyam Allami
    • Direção de Arte: Jérémie Duchier
    • Figurino: Dorothée Guiraud
    • Cenografia: Gwendal Lebar
    • Distribuição: Pyramide Distribution (França)
    • Gênero: Drama histórico
    • Ano de Lançamento: 2010
    • Duração: 159 minutos
    • Idioma: Francês
    • Países: França, Bélgica
    • Elenco Principal:
      • Yamina Benguigui (como Saartjie Baartman)
      • Olivier Gourmet (como o médico Dr. Dunlop)
      • Isabelle Sadoyan (como Madame de la Duree)
      • François Négret (como Lous)
      • Andre Jacobs (como Petrus)

    Sinopse:

    "Vênus Noire" é uma dramatização da vida de Saartjie Baartman, uma mulher Khoikhoi que foi levada para a Europa no início do século XIX e exibida como uma "aberração" devido às suas características físicas. O filme descreve o sofrimento e a exploração que Baartman enfrentou, sendo tratada como um objeto de curiosidade racial e sexual. Através da narrativa intensa e emocional, o filme aborda a objetificação do corpo feminino negro e as humilhações que ela sofreu em sua vida e após sua morte.

    Prêmios e Indicações:

    • Festival de Cinema de Veneza (2010): Indicado ao Leão de Ouro.
    • Prêmios César (2011): Indicado a Melhor Filme e Melhor Atriz para Yamina Benguigui.
    Bibliografia 
    • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Heloísa P. A. Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008. Dispinível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/8269273/mod_resource/content/1/FANON_PELES%20NEGRAS%20MASCARAS%20BRANCAS.pdf 

    • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Mario Cláudio. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008. Disponível em: https://afrocentricidade.wordpress.com/wp-content/uploads/2012/06/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.pdf 

    • Frantz Omar Fanon (1925-1961). Fanon, Frantz Omar. Racismo e cultura. Editora Terra sem Amos: Brasil, 2021.

    4 de dezembro de 2024

    PAGUça-sua-mente: Como usar o filme Lanternas Vermelhas em sala de aula para discutir desigualdade de gênero

    O filme Lanternas Vermelhas, dirigido por Zhang Yimou, é uma obra densa que aborda questões de gênero, poder e identidade dentro de uma sociedade patriarcal rigidamente hierarquizada. As protagonistas do filme lidam com as imposições sociais que moldam suas identidades e corpos dentro do contexto opressivo do clã Chen. No universo de Lanternas Vermelhas, as esposas e concubinas do patriarca são obrigadas a desempenhar papéis específicos de feminilidade para agradá-lo e garantir sua sobrevivência social e econômica.

    A protagonista Songlian, ao se tornar a quarta esposa do senhor Chen, é inserida em um sistema de competição que exige dela a performance de esposa subserviente e sedutora. O acender das lanternas vermelhas para a esposa favorecida simboliza não apenas o controle do patriarca, mas também a necessidade de conformidade às normas de gênero que definem o valor das mulheres em relação à aprovação masculina.

    Songlian,  frequentemente, desafia as regras, mas, ao mesmo tempo, é forçada a participar desse jogo das lanternas, mesmo quando contestado, permanece difícil de escapar. No clã Chen, os corpos das mulheres são transformados em anexo do domínio do soberano territórios de controle. Esses corpos são construídos e regulados por normas sociais que ditam o que é aceitável ou desejável naquele ambiente. No filme, o controle do patriarca sobre os corpos das esposas é literal e simbólico: o ato de escolher com quem passará a noite não é apenas uma questão de desejo, mas também de poder. O acender ou apagar das lanternas sinaliza quem será valorizada ou ignorada, reforçando a relação entre poder e subjugação. Além disso, as personagens femininas são constantemente colocadas umas contra as outras, perpetuando um sistema que impede a solidariedade entre elas. Essa dinâmica reflete o que Judith Butler chama de fragmentação de resistências sob regimes de poder opressivos, nos quais as mulheres se tornam tanto vítimas quanto agentes de manutenção das normas patriarcais.

    Butler e outras estudiosas do feminismo propõem que as normas de gênero são mantidas por meio de coerção, e Lanternas Vermelhas exemplifica isso de maneira clara. A violência psicológica e física imposta às mulheres que transgridem as regras do clã ilustra como essas normas não são sustentadas apenas por expectativas sociais, mas também por punições concretas.

    Um exemplo central no filme é a personagem da terceira esposa, que desafia as normas do clã ao buscar amor fora do casamento. Sua punição é extrema e serve como uma advertência para as outras mulheres. Esse ato evidencia a "violência reguladora" é fundamental para a manutenção das normas de gênero.

    Embora o filme seja marcado pela opressão, Songlian demonstra momentos de resistência que podem ser interpretados como atos subversivos. Sua rejeição ao sistema e sua recusa em desempenhar plenamente o papel que lhe foi imposto revelam as fissuras nas normas de gênero que Butler identifica como oportunidades para desestabilizar o poder.

    No entanto, a subversão de Songlian é limitada pelas estruturas que a cercam. Ao final, sua resistência resulta em isolamento e, possivelmente, loucura, destacando o custo elevado da tentativa de desafiar as normas dentro de um sistema tão rigidamente controlado.

    Por fim, o espaço físico da mansão também pode ser analisado sob a ótica da performance do gênero. Os pátios, corredores e quartos funcionam como palcos onde as performances de gênero são encenadas e observadas. A presença constante de servos e o olhar do patriarca reforçam a vigilância que sustenta o sistema, onde as normas são perpetuadas pela repetição e pela observação social.

    Lanternas Vermelhas pode ser entendido utilizado em atividades escolares como um recurso para ensinar  sobre sistema patriarcal, desigualdade de gênero, performatividade de gênero e o impacto das normas patriarcais nos corpos e identidades das mulheres. 

    Proposta de Atividade Educativa:

    Organize uma sessão de exibição do filme Lanternas Vermelhas (duração: 2h 5m), uma atividade extracurricular ideal para um Cine Debate fora do horário de aula. Essa iniciativa é perfeita para atrair um público interessado em discutir questões sociais, podendo ser realizada como parte de um "Clube do Cinema" ou de uma reunião de um Coletivo Feminista escolar.

    Sua escola já tem iniciativas como Sessões de Cine Debate, Clubes do Livro, Clubes de Cinema ou um Coletivo Feminista? Não? Então, que tal começar a organizar atividades extracurriculares? Essas ações podem criar um espaço de diálogo, reflexão e engajamento, envolvendo os estudantes em debates ricos sobre temas como desigualdade de gênero, cultura e sociedade. É uma oportunidade incrível de estimular o pensamento crítico e a troca de ideias e a cidadania!

    Após a exibição (ou trechos) do filme Lanternas Vermelhas, organize um debate interativo que envolva diferentes formatos e estratégias para engajar os participantes. A ideia é criar um ambiente acolhedor, onde todos se sintam à vontade para expressar suas ideias.

    1. Estrutura do Debate (30-40 minutos)

    Quebra-gelo inicial (5 minutos): Comece com uma pergunta rápida e aberta para aquecer a discussão. Exemplo: “O que mais chamou sua atenção no filme? Por quê?”

    • Peça que os participantes compartilhem suas impressões em uma frase curta. Isso ajuda a criar um clima de inclusão desde o início.

    2.Divisão em pequenos grupos (10 minutos):

    • Separe os participantes em pequenos grupos (3 a 5 pessoas) e distribua perguntas temáticas. Cada grupo terá alguns minutos para discutir e depois compartilhar um resumo com os demais.

    Perguntas para os grupos:

    • “Como o sistema patriarcal mostrado no filme afeta a vida das mulheres e a relação entre elas?”
    • “Existem paralelos entre a realidade retratada no filme e situações que você conhece na sociedade atual?”
    • “Você percebe alguma forma de resistência das personagens ao sistema? Quais foram as consequências?”

    3. Sessão plenária (15 minutos):

    • Traga as ideias dos grupos para uma discussão coletiva. 
    • Use as respostas como ponto de partida para aprofundar os temas.

    Pergunte:

    • “Como podemos relacionar os simbolismos do filme (como as lanternas) com situações contemporâneas de desigualdade de gênero?”
    • “A competição entre as esposas no filme foi incentivada pelo patriarcado. Que estratégias poderiam ser usadas para construir solidariedade entre elas?”

    Dinâmica interativa: Papel invertido (10 minutos)

    • Peça que os participantes imaginem um cenário em que as regras da mansão fossem diferentes:
    • E se as mulheres unissem forças contra o patriarca?
    • E se cada esposa tivesse liberdade para decidir como conduzir sua própria vida?

    4. Divida a plateia em grupos e peça para que criem um breve “final alternativo” para o filme, representando como seria se as personagens dessem um passo em direção à liberdade ou à solidariedade. Depois, convide voluntários para compartilhar suas ideias.

    5. Encerramento com reflexão (5 minutos):

    • Finalize o debate com uma pergunta reflexiva, que conecte o tema do filme à vida dos participantes:
    • “Após assistir ao filme e discutir suas questões, o que você acha que podemos fazer para combater as desigualdades de gênero em nossa sociedade?”

    6. Sugira que cada participante reflita sobre ações ou pequenas mudanças que podem promover a igualdade no dia a dia.

    7. Dicas para engajar o público:

    • Seja uma mediadora dinâmica, alguém que saiba equilibrar a conversa, incentivando quem ainda não falou e mantendo o foco nos temas.
    • Utilize tecnologia, incorpore mídias, exiba imagens ou vídeos curtos de situações reais de desigualdade de gênero para enriquecer a discussão.

    Aborto legal: Como o terrorismo bolsonarista agora volta-se contra os corpos das mulheres

    A mesma ira desenfreada testemunhada em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023 agora se volta contra os corpos das mulheres, transformados em território a ser tomado pela força, depredado, saqueado de direitos e obrigado a se submeter à vontade da bancada da extrema direita. Desde aquele fatídico domingo, as ações bolsonaristas têm como objetivo destruir o direito de decidir e instaurar um clima de terror. O direito de decidir quem governa o país. O direito decidir quem governa o corpo feminino: se a própria mulher ou o Estado.



    O fim do aborto legal não trata apenas de fetos, mas de uma guerra silenciosa contra a individualidade, a liberdade e autonomia das mulheres, uma tentativa de sequestro dos direitos femininos para negociar. Comparar o bolsonarismo a grupos terroristas não é um exagero, mas um reconhecimento dos paralelos perturbadores: como o uso da violência como método, o controle social como objetivo e a instrumentalização da dor como moeda de troca. Assim como terroristas utilizam civis como escudos humanos, a bancada bolsonarista instrumentaliza os direitos constitucionais das brasileiras para barganhar anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro. A manutenção do direito ao aborto em casos de estupro, anencefalia ou risco de vida da gestante é usada como chantagem:  anistiem os terroristas, ou mulheres vulneráveis pagarão o preço. Essa cruel troca política carrega a marca de práticas terroristas, mas com um toque ainda mais insidioso: transformar o sofrimento das mulheres em arma para impor a vontade de criminosos.

    Revogar o aborto legal é mais do que um ataque aos direitos reprodutivos; é um projeto de controle absoluto, que ignora os riscos à saúde física e mental das mulheres. Neste cenário, o corpo feminino torna-se uma nova Praça dos Três Poderes, sitiada pela brutalidade de uma ideologia que busca impor sua visão de mundo à força.E a retórica moralista, travestida de preocupação com "criancinhas indefesas", não passa de oportunismo. 

    Se a vida das crianças fosse realmente sagrada, o governo de Bolsonaro não teria enfraquecido medidas essenciais, como a obrigatoriedade do uso de cadeirinhas infantis, que salvam vidas há décadas. Esse discurso moralista não visa proteger crianças, mas invadir a vida de cada mulher, subjugá-la, apagando sua liberdade de escolha—assim como tentou anular a vontade da maioria dos brasileiros nas urnas.

    Assim como o terrorismo, o bolsonarismo utiliza o medo como ferramenta política. Seu objetivo é desestabilizar, coagir e eliminar a capacidade das mulheres—e, mais amplamente, dos cidadãos—de fazer escolhas livres e autônomas. É uma agenda de controle, onde a liberdade é substituída pela sujeição.



    Esse ataque aos direitos reprodutivos das mulheres expõe uma contradição central do bolsonarismo: apesar de seus discursos que reivindicam liberalismo, suas ações desmentem qualquer compromisso com ela. Negar às mulheres o direito de decidir sobre seus corpos é a antítese da liberdade individual, transformando a autonomia pessoal em um alvo de controle autoritário. O bolsonarismo não tem nada liberal; é um projeto que apenas  instrumentaliza o conceito de liberdade para justificar a opressão, enquanto silencia escolhas e impõe uma moral única. Defender o direito das mulheres à autonomia é reafirmar que a verdadeira liberdade só existe onde cada indivíduo pode governar a si mesmo, livre da coerção de um Estado que se coloca como dono de corpos e destinos.



    Caso P. Diddy: a Misoginia no Hip Hop e os Impactos da Capitalização da Cultura


    O caso de Sean Combs, conhecido como P. Diddy, exemplifica como as dinâmicas de poder e misoginia são centralizadas não apenas na produção cultural, mas também na conduta pessoal de figuras-chave da indústria do hip hop. As acusações de tráfico sexual, extorsão, estupro, agressão e obstrução judicial contra Combs revelam uma realidade que transcende o campo artístico: a replicação e amplificação de valores misóginos em diferentes esferas de influência.


    No contexto do hip hop, a misoginia opera como um dos pilares estruturais de uma masculinidade exacerbada, profundamente associada à objetificação das mulheres e à normalização da violência de gênero. Essa construção, fortemente vinculada ao capitalismo cultural, cria um ciclo onde a mercantilização da cultura negra não apenas sustenta, mas também aprofunda desigualdades e explorações já presentes. A música e os videoclipes frequentemente retratam mulheres — especialmente mulheres negras — como objetos sexualizados, reforçando estereótipos degradantes que desumanizam e silenciam vozes femininas dentro do gênero.

    A trajetória comercial do hip hop exacerbou essas dinâmicas. O que inicialmente era um movimento de resistência e autoafirmação de comunidades marginalizadas foi transformado em um produto global rentável, adaptado para o consumo de massas. Nesse processo, os elementos críticos e politizados do hip hop original foram diluídos ou abandonados, dando lugar a representações hipermasculinas baseadas na violência, na ostentação e na subjugação de outros — incluindo mulheres.

    A imagem pública de artistas como P. Diddy, Jay-Z e outros é frequentemente moldada por narrativas que celebram o sucesso financeiro, enquanto ignoram as consequências éticas de suas práticas. A própria ideia de masculinidade no hip hop comercial está inextricavelmente ligada à dominação, seja ela territorial, financeira ou sexual. As acusações contra Combs, embora sejam um caso específico, refletem um padrão mais amplo em que a misoginia é normalizada como parte de uma performance cultural e pessoal.

    Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer as críticas internas ao gênero. Artistas e ativistas feministas negras têm denunciado consistentemente essas práticas, apontando como elas replicam dinâmicas coloniais e racistas dentro das próprias comunidades negras. Intelectuais como bell hooks já destacaram como a desumanização das mulheres negras no hip hop reflete uma continuidade histórica das opressões enfrentadas desde o período escravocrata, transformando o corpo feminino negro em um território de disputa e exploração.

    Os esforços de feministas no hip hop, embora essenciais, frequentemente enfrentam resistência dentro da indústria e da cultura. O capitalismo, que transformou o hip hop em um produto global, resiste a mudanças estruturais que poderiam ameaçar seu apelo comercial. Nesse contexto, a luta contra a misoginia no hip hop se torna não apenas uma batalha cultural, mas também uma batalha política e econômica, exigindo um olhar crítico sobre as forças que moldam a indústria musical contemporânea.

    O caso de Sean Combs ilustra, assim, como a misoginia não é apenas um tema explorado no campo simbólico do hip hop, mas também uma realidade materializada nas práticas de poder de seus protagonistas. Para reimaginar o hip hop como uma força de resistência e emancipação, será necessário enfrentar tanto as estruturas de dominação capitalistas quanto os discursos e práticas que perpetuam a opressão de gênero.

    O homem negro, especialmente no contexto da cultura hip hop, frequentemente se torna um vetor de masculinidade tóxica devido à sobreposição de estereótipos raciais e de gênero que moldam sua representação cultural. A narrativa do homem negro como símbolo de força, agressividade e virilidade, muitas vezes exaltada em letras de música, videoclipes e outros produtos culturais, não apenas reafirma noções de hipermasculinidade, mas também reforça dinâmicas que desumanizam tanto os homens quanto as mulheres negras. Essa construção não surge isoladamente: ela é resultado de séculos de racismo estrutural que associa o corpo negro à brutalidade e à sexualidade desenfreada, enquanto, ao mesmo tempo, marginaliza economicamente e socialmente os homens negros.
    No contexto do hip hop, esses estereótipos são intensificados pela comercialização da cultura, que frequentemente promove conteúdos que maximizam o apelo comercial da masculinidade agressiva e sexualizada. Assim, o homem negro é apresentado não apenas como um consumidor de masculinidade tóxica, mas também como um de seus principais transmissores, ao mesmo tempo em que suas experiências de opressão e exclusão são apagadas ou minimizadas. Essa dinâmica perpetua ciclos de violência simbólica e real, obscurecendo as complexidades das vivências masculinas negras e limitando as possibilidades de expressões alternativas e emancipadoras de masculinidade.

    Homens brancos urbanos não costumam experimentar a frustração econômica, racial e a marginalização que homens negros enfrentam. Então, como explicar a identificação desses homens brancos urbanos com homens negros suburbanos? Essa identificação os leva a se apropriar da cultura negra como se fosse sua. Essa apropriação ultrapassa uma simples afinidade com os irmãos pretos suburbanos ou o gosto pela música (o hip hop). O sucesso da cultura afro-americana entre homens brancos americanos está relacionado a modelos de masculinidade. 

    A imagem do homem negro suburbano é, em parte, a de um conquistador de territórios. Mesmo marginalizado e com poucos recursos, ele assegura o domínio masculino sobre o gueto. Como guerreiros, não temem matar nem morrer, defendem sua honra e seus territórios, e sobre eles ainda paira o mito da superpotência sexual. O homem negro suburbano marginalizado representa, assim, um modelo de hipermasculinidade, que o hip hop expressa de maneira emblemática.

    As representações de masculinidade na cultura hip hop visam transmitir poder — o poder do marginal, do anti-herói. Mas não é só isso: elas também representam um estilo de vida visto como rentável, o que aumenta sua atratividade. No entanto, há elementos nessa representação de masculinidade que não podem ser apropriados ou compreendidos por jovens não suburbanos: a "credibilidade das ruas", obtida apenas no contexto original em que o hip hop foi criado.

    A experiência da juventude preta suburbana se expressa no limiar entre a vida e a morte. Poucos jovens brancos precisaram se preocupar com gangues, armas ou situações de risco iminente de morte por causa da cor da pele. Ainda assim, muitos adotam as calças jeans largas sem cinto que imitam roupas de presídio ou reproduzem a corporalidade hipermasculina do hip hop. Embora desprovido de base contextual, o homem branco constrói uma aparência ou performance dessa masculinidade que soa crível. 

    Essa é a qualidade magnética do hip hop para jovens brancos: um modelo de masculinidade. À medida que o hip hop se capitalizou, a experiência original que serviu de base para seus elementos foi sendo abandonada. Nesse sentido, a apropriação da cultura hip hop fora dos guetos pela juventude branca significou ignorar os gritos de angústia dos homens pretos, diluir letras desconfortáveis e "branquear" aspectos muito negros, transformando o hip hop em um novo e lucrativo negócio.

    A capitalização do hip hop também subtraiu seu conteúdo crítico, exacerbando a masculinidade baseada na objetificação das mulheres, violência, consumismo e experiências distantes da realidade da maioria dos homens negros suburbanos. A utopia de Afrika Bambaataa, que visava transformar o hip hop em um substituto para as competições fratricidas, converter gangues armadas em grupos de dança e grafite, e redirecionar as disputas por territórios para uma luta política contra o sistema, foi enfraquecida pela comercialização.

    Hoje, misoginia, hipermasculinidade e violência predominam no hip hop comercial. Rimas sobre tiroteios, letras sobre homens matando outros homens e sobre machos invulneráveis são as mais bem-sucedidas. O rapper 50 Cent, por exemplo, transforma em música ("Many Men") o fato de ter sobrevivido a nove tiros, usando esse evento como símbolo da tenacidade de sua masculinidade.

    Outra representação perturbadora é a da feminilidade. Mulheres são continuamente objetificadas e degradadas em músicas e vídeos misóginos. A mulher preta, em particular, é frequentemente representada como objeto hipersexualizado, despertando a oposição do feminismo ao hip hop. Embora muitos rappers afirmem amar as mulheres pretas, o tratamento dado a elas em suas letras não difere muito daquele que recebiam no século XIX, sob o olhar dos senhores de escravos brancos: tratadas como objetos sexuais à disposição de homens poderosos.

    A interseção entre a misoginia no hip hop e os impactos da capitalização da cultura revela como a comercialização intensificou narrativas centradas na masculinidade tóxica, transformando aspectos críticos da cultura hip hop em produtos lucrativos que reforçam opressões de gênero e raça. Enquanto a misoginia, muitas vezes expressa na objetificação das mulheres e na glorificação da violência, reflete dinâmicas históricas e sociais complexas, a capitalização exacerbou essas representações, privilegiando conteúdos que se alinham a expectativas mercadológicas e estereótipos consumíveis. Nesse contexto, a masculinidade tóxica no hip hop se consolida como parte de um sistema que não apenas romantiza essas práticas, mas também as exporta como normas culturais globalmente influentes, moldando identidades e perpetuando desigualdades. Essa dinâmica serve de ponte para explorar como a masculinidade no hip hop pode ser repensada à luz de seus impactos culturais e sociais.


    3 de dezembro de 2024

    POEMA “ME GRITARAM NEGRA”, DE VICTORIA SANTA CRUZ



    Tinha sete anos apenas,

    apenas sete anos,

    Que sete anos!

    Não chegava nem a cinco!

    De repente umas vozes na rua

    me gritaram Negra!

    Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!

    “Por acaso sou negra?” – me disse

    SIM!

    “Que coisa é ser negra?”

    Negra!

    E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.

    Negra!

    E me senti negra,

    Negra!

    Como eles diziam

    Negra!

    E retrocedi

    Negra!

    Como eles queriam

    Negra!

    E odiei meus cabelos e meus lábios grossos

    e mirei apenada minha carne tostada

    E retrocedi

    Negra!

    E retrocedi . . .

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    Negra! Negra! Neeegra!

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    E passava o tempo,

    e sempre amargurada

    Continuava levando nas minhas costas

    minha pesada carga

    E como pesava!…

    Alisei o cabelo,

    Passei pó na cara,

    e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    Negra! Negra! Neeegra!

    Até que um dia que retrocedia , retrocedia e que ia cair

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    Negra! Negra! Negra! Negra!

    Negra! Negra! Negra!

    E daí?

    E daí?

    Negra!

    Sim

    Negra!

    Sou

    Negra!

    Negra

    Negra!

    Negra sou

    Negra!

    Sim

    Negra!

    Sou

    Negra!

    Negra

    Negra!

    Negra sou

    De hoje em diante não quero

    alisar meu cabelo

    Não quero

    E vou rir daqueles,

    que por evitar – segundo eles –

    que por evitar-nos algum disabor

    Chamam aos negros de gente de cor

    E de que cor!

    NEGRA

    E como soa lindo!

    NEGRO

    E que ritmo tem!

    Negro Negro Negro Negro

    Negro Negro Negro Negro

    Negro Negro Negro Negro

    Negro Negro Negro

    Afinal

    Afinal compreendi

    AFINAL

    Já não retrocedo

    AFINAL

    E avanço segura

    AFINAL

    Avanço e espero

    AFINAL

    E bendigo aos céus porque quis Deus

    que negro azeviche fosse minha cor

    E já compreendi

    AFINAL

    Já tenho a chave!

    NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

    NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

    NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

    NEGRO NEGRO

    Negra sou!