24 de janeiro de 2012

Geraldo Alkimin contra o povo





O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São José dos Campos, Aristeu César Pinto Neto, disse nesta segunda-feira (23) que houve mortos na operação de reintegração de posse do terreno conhecido como Pinheirinho, na periferia da cidade. De acordo com ele, crianças estão entre as vítimas. Esse episódio me lembra um trecho do livro "Cem anos de solidão", de Gabriel Garcia Marques.. 






— Senhoras e senhores disse o capitão com uma baixa, lenta, um pouco cansada

— têm cinco minutos para se retirar.

A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu.

— Já passaram os cinco minutos — disse o capitão mesmo tom. — Mais um minuto e atiramos.

José Arcadio Segundo, suando gelo, desceu o menino ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes disparar”, murmurou ela. José Arcadio Segundo não teve tempo de falar, porque no mesmo instante reconheceu a voz rouca do Coronel Gavilán fazendo eco com um grito às palavras da mulher. Embriagado pela tensão, pela maravilhosa profundidade do silêncio e, além disso, convencido de que nada f aria se mover aquela multidão pasmada pela fascinação da morte, José Arcadio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida, levantou a voz.

— Cornos! —gritou.— Podem levar de presente o minuto que falta.

Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe.” Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcadio Segundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico. (...)

Quando José Arcádio Segundo acordou, estava de peito para cima nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável. Disposto a dormir muitas horas, a salvo do terror e do horror, acomodou-se do lado que lhe doía menos e só então descobriu que estava deitado sobre os mortos. (...) Tentando fugir do pesadelo, José Arcadio Segundo arrastou-se de um vagão a outro, na direção em que avançava o trem, e, nos relâmpagos que surgiram por entre as esquadrias de madeira ao passar pelos povoados adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças, que iam talvez ser atirados ao mar como as bananas refugadas. (...). Quando chegou ao primeiro vagão deu um salto para a escuridão e ficou estendido na vala da estrada até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já tinha visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada extremo e uma terceira no centro. (...) Jose Arcadio Segundo ignorava onde tinha saltado mas sabia que caminhando em sentido contrário ao do trem chegaria a Macondo. Ao fim de mais de três horas de marcha, ensopado até os ossos, com uma dor de cabeça terrível, divisou as primeiras casas à luz do amanhecer.

Atraído pelo cheiro do café, entrou numa cozinha onde uma mulher com uma criança no colo estava inclinada sobre o fogão.

— Bom dia — disse exausto. — Sou José Arcadio Segundo Buendía. Pronunciou o nome completo, letra por letra, para se convencer de que estava vivo. Fez bem porque a mulher tinha pensado que era uma assombração, ao ver na porta a figura esquálida, sombria, com a cabeça e a roupa sujas de sangue e tocada pela solenidade da morte. Conhecia-o. Trouxe uma manta para que se cobrisse enquanto secava a roupa no fogão, esquentou água para que lavasse a ferida, que era apenas um arranhão na pele, e lhe deu uma fralda limpa para que vendasse a cabeça. Em seguida, serviu-lhe uma xícara de café, sem açúcar como lhe haviam dito que tomavam os Buendía, e estendeu a roupa perto do fogo. José Arcadio Segundo não falou enquanto não terminou de tomar o café.

— Deviam ser uns três mil — murmurou.

— O quê?

— Os mortos — esclareceu ele. — Deviam ser todos os que estavam na estação.

A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não houve mortos”, disse. “Desde a época do seu tio, o coronel, que não acontece nada em Macondo.” (...) Segundo antes de chegar em casa lhe disseram a mesma coisa: “Não houve mortos.”

Passou pela praça da estação e viu as mesas de frituras amontoadas uma em cima da outra e tampouco ali encontrou algum rastro do massacre. As ruas estavam desertas sob a chuva tenaz e as casas fechadas, sem vestígios de vida interior. O único sinal humano era o primeiro toque para a missa. Bateu na porta da casa do Coronel Gavilán. Uma mulher grávida, que tinha visto muitas vezes, fechou-lhe a porta na cara. “Foi-se embora”, disse assustada. “Voltou para a terra dele.” A entrada principal do galinheiro entelado estava vigiada, como sempre, por dois guardas locais que pareciam de pedra sob a chuva, com capas e capacetes de impermeável. Na sua ruazinha marginal, os negros antilhanos cantavam em coro os salmos de sábado. José Arcadio Segundo pulou a cerca do quintal e entrou em casa pela cozinha. Santa Sofia de la Piedad mal levantou a voz. “Que Fernanda não te veja”, disse. “Agora mesmo estava se levantando.” Como se cumprisse um pacto implícito, levou o filho para o quarto dos penicos, arrumou-lhe o arrebentado catre de Melquíades e às duas da tarde, enquanto Fernanda fazia a sesta, passou-lhe pela janela um prato de comida.

Aureliano Segundo dormira em casa porque a chuva o surpreendera ali e, às três da tarde, ainda continuava esperando que estiasse. Informado em segredo por Santa Sofía de la Piedad, a essa hora visitou o irmão no quarto de Melquíades. Tampouco ele acreditou na versão do massacre nem no pesadelo do trem carregado de mortos que viajava para o mar. Na noite anterior tinham lido uma comunicação nacional extraordinária, para informar que os operários tinham obedecido à ordem de evacuar a estação e se dirigiram para as suas casas em caravanas pacíficas. A comunicação informava também que os dirigentes sindicais, com um elevado espírito patriótico, tinham reduzido as suas reivindicações a dois pontos: reforma dos serviços médicos e construção de latrinas nas vivendas. Informou-se mais tarde que, quando as autoridades militares obtiveram o acordo dos trabalhadores, apressaram-se em comunicá-lo ao Sr. Brown e que este não só tinha aceito as novas condições como também oferecera pagar três dias de festas públicas para celebrar o fim do conflito. Só que quando os militares lhe perguntaram para que data se podia anunciar a assinatura do acordo, ele olhou pela janela do céu listrado de relâmpagos e fez um profundo gesto de incerteza:

— Quando estiar — disse. — Enquanto durar a chuva suspendemos todas as atividades.

Não chovia há três meses e era tempo de seca. Mas quando o Sr. Brown anunciou a sua decisão, precipitou-se em toda a zona bananeira o aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcadio Segundo a caminho de Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades até passar a chuva.



(cem anos de Solidão Gabriel Garcia Marques)

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