Rede Feminista de Saúde alerta: A Rede Cegonha é retrocesso de 30 anos
por Conceição Lemes
A presidenta Dilma Rousseff lançou dia 28 de março, em Belo Horizonte (MG), a Rede Cegonha. Sobre ela o site do Ministério da Saúde informa:
Composta por um conjunto de medidas para garantir a todas as brasileiras, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), atendimento adequado, seguro e humanizado desde a confirmação da gravidez, passando pelo pré-natal e o parto, até os dois primeiros anos de vida do bebê. As medidas previstas na Rede Cegonha abrangem a assistência obstétrica às mulheres – com foco na gravidez, no parto e pós-parto como também a assistência infantil (às crianças).
A Rede Cegonha contará com R$ 9,397 bilhões do orçamento do Ministério da Saúde para investimentos até 2014. Estes recursos serão aplicados na construção de uma rede de cuidados primários à mulher e à criança.
Só que o bicho está pegando nos movimentos de mulheres e de saúde.
“A Rede Cegonha é no bojo da concepção de mulher-mala [mãe e filho no mesmo cestinho], antiga, antiga”, chia a médica e escritora Fátima Oliveira, que está nessa luta há mais de 30 anos.
A doutora Fátima é do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). De 2002 a 2006, foi secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde. Em outubro do ano passado, ela já havia manifestado essa preocupação no artigo Algumas ausências que foram paradigmáticas no debate eleitoral: “Numa olhada de relance nos discursos das campanhas à Presidência, a concepção de mulher-mala foi o tom das propostas para a ’saúde feminina’. Foi de amargar… Ai, meus sais!”.
“As cegonhas vão parir…tudo está resolvido! ”, ironiza a farmacêutica Clair Castilhos, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que, seguida, desabafa. “É profundamente doloroso que tenhamos que criticar a formulação e implantação de um programa do Ministério da Saúde voltado para nós mulheres. E o mais irônico e melancólico é que isto aconteça precisamente no momento em que temos um governo presidido por uma mulher com valorosa e digna trajetória política.”
“O conceito trazido pela Rede Cegonha é um retrocesso nas políticas com enfoque de gênero, saúde integral da mulher e direitos reprodutivos e sexuais”, alerta a cientista social Telia Negrão, secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e diretora da RSMLAC, em entrevista exclusiva ao Viomundo.
“A ideia da Rede Cegonha desumaniza o evento reprodutivo, quando retira das mulheres o papel de trazedoras dos filhos ao mundo”, critica Telia. “Em consequência, elas deixam também de ser detentoras dos direitos reprodutivos. Adetentora será a cegonha.”
Detalhe: a Rede Cegonha foi lançada em 28 de março; no dia 22, a sua proposta foi apresentada numa oficina de trabalho no Ministério da Saúde às agências governamentais e agências de saúde das Nações Unidas, à Rede Feminista e a pessoas da Pastoral da Criança da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
“A presença da CNBB nos causou muito estranhamento”, observa Telia Negrão. “Se era para termos agremiações religiosas, por que só a CNBB? Infelizmente, parece uma sinalização da capacidade desses setores de influirem nas nossas políticas públicas. E isso fere profundamente o caráter laico do Estado brasileiro.”
A seguir a íntegra da entrevista que Telia Negrão concedeu a esta repórter. Vale a pena a conferir, para entender o pano de fundo da Rede Cegonha, suas implicações e por que os movimentos de feministas e de saúde a estão criticando.
Viomundo – Como a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos recebeu o anúncio da Rede Cegonha?
Telia Negrão – Como um retrocesso. É a concepção materno-infantil de saúde da mulher, que criticamos há cerca de 30 anos, pois é reducionista. Na verdade, na campanha eleitoral do ano passado nós tivemos um primeiro sinal nesse sentido.
Viomundo – Explique melhor.
Telia Negrão — Na campanha eleitoral do ano passado, a Rede Feminista, como fez em eleições anteriores, elaborou uma carta — A saúde das mulheres merece o teu voto — para os candidatos de todos níveis da disputa, deputados a presidente da Republica. Nela, reafirmamos mais uma vez o paradigma que defendemos há cerca de 30 anos no âmbito das políticas públicas de saúde: a atenção integral à saúde das mulheres, a garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos como parte dos direitos humanos das mulheres, o enfoque de gênero, diversidade de raça e de etnia.
Num determinado momento disputa, porém, o aborto foi trazido para dentro da agenda campanha eleitoral pelos setores conservadores, porque sabiam da posição da então candidata Dilma, que era favorável à descriminalização do aborto.
Foi feita toda aquela pressão para que ela recuasse na sua posição e garantisse uma postura o mais aproximada possível da concepção materno-infantil, que consideramos uma posição limitada da saúde das mulheres, porque não leva em conta os ciclos de vida nem a possibilidade de as mulheres não desejarem a maternidade. Esse foi o primeiro momento.
Depois, ainda durante a campanha, soubemos que Dilma, em visita ao Rio de Janeiro, conheceu um projeto denominado Rede Cegonha, um serviço de transporte de grávidas para ganhar o bebê, e se apaixonou pelo nome. Pelo menos, foi a informação que tivemos de dentro da campanha.
Soubemos também que os marqueteiros consideraram então Rede Cegonha um bom nome para a proposta da atenção às mulheres no período gestação-parto-puerpério, ou seja, o período gravídico puerperal. De forma que, ao final da campanha já se nota uma tendência à focalização da atenção materno-infantil em vez da atenção integral à saúde das mulheres. Ficou claro que corríamos o risco de nesse governo, frente às pressões dos setores conservadores, ser anunciada uma política com viés reducionista.
Viomundo – Mas esse período já é abordado pelas políticas públicas existentes no Brasil?
Telia Negrão – Sim. Temos o Plano Nacional de Humanização do Parto (PNHP) e uma norma regulamentadora, a RDC 36, que definem uma abordagem de como deve ser a atenção das mulheres no período gravídico-puerperal. Outras políticas juntas constituem a Atenção aos Direitos Reprodutivos das Mulheres, que engloba o planejamento reprodutivo, a anticoncepção de emergência, as políticas destinadas ao enfrentamento da violência sexual. Esse conjunto de ações chama-se Política Nacional dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos das Mulheres Brasileiras.
Viomundo – E o ministro Alexandre Padilha?
Telia Negrão – Nós tivemos audiência com ele em Brasília, em13 de janeiro. Na ocasião, cobramos que o Ministério da Saúde reafirmasse a política de atenção integral à saúde e de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Também que retomasse a discussão de temas extremamente importantes, como a mortalidade materna, os abortos inseguros, a prevenção do HIV.
O ministro nos garantiu que essas políticas seriam reafirmadas, embora já soubesse que teria de estruturar a Rede Cegonha. Disse que estruturaria essa proposta a partir da visão de integralidade.
No mês de fevereiro, soubemos que a proposta da Rede Cegonha já estava sendo construída. Nós contatamos então o ministério e dissemos que gostaríamos de discutir já na sua elaboração.
No dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, emitimos uma nota, dizendo que queríamos saber o conteúdo da proposta. Ou seja, vimos que o gato estava subindo no telhado.
Em 22 de março – o lançamento foi no dia 28! –, a Rede Cegonha nos foi apresentada numa oficina de trabalho no Ministério da Saúde. Além das agências governamentais e agências de saúde das Nações Unidas, estiveram presentes uma integrante do Conselho Nacional de Saúde, uma do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, representado pela Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], a Rede Feminista de Saúde e pessoas da Pastoral da Criança da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. A presença da CNBB nos causou muito estranhamento.
Viomundo – Da sociedade civil só a Rede Feminista e a CNBB?
Telia Negrão – Sim, isso obviamente produziu em nós uma estranheza. E quando a proposta foi apresentada, de imediato reagimos com uma análise crítica. Dissemos que o que tinha entrado na proposta era muito bom, pois visa à redução dos índices de mortalidade materna e de sequelas no período gravídico-puerperal, que nos inquietam também. Mas o que nos preocupou foi aquilo que não tinha sido incluído na proposta. Afinal, se havia um diagnóstico, por sinal muito bom, para cada item, deveria haver uma proposta correspondente.
Viomundo – E qual o diagnóstico?
Telia Negrão – O primeiro ponto era o dado de aborto: 189 mil por ano. Na verdade, correspondem às curetagens realizadas no Sistema Único de Saúde (SUS). E a estimativa de 1 milhão de abortos provocados por ano, feitos em condições inseguras, decorrentes de falta de acesso das mulheres ao planejamento reprodutivo, falha do método contraceptivo e não cumprimento da norma técnica do Ministério da Saúde de violência sexual. Essa norma define como deve ser feita a atenção aos agravos à violência sexual, incluindo o aborto, e cria serviços de atendimento.
Esse ponto, porém, não tem no programa apresentado, como correspondência, qualquer estratégia para garantir os serviços de aborto legal, tampouco qualquer estratégia com vistas à redução dos obstáculos para a realização da interrupção da gestação. Enfim, não há um enfrentamento correspondente a esse problema gravíssimo no Brasil.
Viomundo – Quer dizer, o Ministério da Saúde apresenta o diagnóstico 1 milhão de abortos provocados por ano, feitos em condições inseguras. Porém, paradoxalmente, quando vai tratar a questão se restringe à mulher que vai ter o bebê, não aborda a que não vai ter, é isso?
Telia Negrão — Exatamente. Não é uma política de direitos reprodutivos. É apenas uma boa política materno-infantil, pura e simplesmente para as mulheres que desejam ter filhos. As que não querem e engravidam, porque não conseguiram planejar ou o planejamento falhou, não são atendidas por essa política.
Portanto, o enfrentamento da mortalidade materna, um dos argumentos para a Rede Cegonha, não está baseado em evidências científicas. A política anunciada é só para as mulheres que querem filho ou aquelas que, mesmo que sem nenhuma condição, vão ter filho contra a própria vontade. Logo, não é uma política que considerou que há mulheres que engravidam e não desejam levar adiante aquela gestação ou que engravidaram em circunstâncias adversas à sua vontade.
Só que, no Brasil, desde 1983, quando foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher [se chamava PAIMS, agora PNAIMS], essa é a diretriz nacional de atenção à saúde das mulheres. Ela prevê que a atenção à saúde reprodutiva das mulheres tem de contemplar as que querem e as não querem ter filhos. Além disso, o Brasil é signatário de documentos internacionais, comprometendo-se com isso. Na próxima semana, haverá reunião em Nova York. O Brasil teria de estar lá, prestando contas.
Viomundo – Daí no início desta da entrevista a senhora ter dito que recebeu a Rede Cegonha como um retrocesso…
Telia Negrão – Infelizmente. Do ponto de vista de atenção integral à saúde das mulheres, que é nosso paradigma desde a década de 1980, a Rede Cegonha é reducionista, um retrocesso nas políticas de gênero, pois as mulheres deixam de ser sujeitas principais no evento reprodutivo, de estar no centro do processo.
Inclusive, a coordenação da Rede Cegonha é compartilhada com a área de atenção à saúde da criança e não tem como ponto de partida a saúde das mulheres. Há uma mudança no próprio foco da política de atenção à maternidade no Brasil, até então pautada por uma visão de direitos reprodutivos e que levava em conta a maternidade das mulheres que não queriam ter aquele filho. A da Rede Cegonha, não.
Viomundo – A doutora Fátima Oliveira diz que a Rede Cegonha traz no bojo a concepção mulher-mala, já vem tudo embrulhadinho no mesmo pacote.
Telia Negrão – (Risos). Nem mala nem cegonha. Nós achamos que esse conceito de Rede Cegonha é muito desumanizador. Ele retira da mulher o papel de sujeito do evento reprodutivo.
A caracterização materno-infantil sempre foi a mulher barriguda, com o peito cheio, e o bebê: mulher como sujeito reprodutivo, afinal a gestação se dá no corpo das mulheres.
Portanto, essa ideia da Rede Cegonha desumaniza o evento reprodutivo, quando retira das mulheres o papel de trazedoras dos filhos ao mundo. E ao retirar as mulheres como sujeito do evento reprodutivo, elas deixam de ser também detentoras dos direitos reprodutivos. A detentora será a cegonha.
A cegonha é um pássaro que não pertence nem à nossa fauna, europeu. Tudo vem prontinho, numa fraldinha, negando que a gestação é um processo humano, social, de nove meses vivido por mulheres. É um discurso muito antigo, mitificador, mentiroso, que não engana nem criancinha. Nem os bebês aceitam mais a velha cegonha. As crianças já sabem que o bebê vem da barriga da mãe.
Viomundo – E mulher-mala?
Telia Negrão – Esse conceito é emblemático,e eu não gosto dele. Nos remete a setores conservadores que não aceitam o direito de a mulher decidir sobre a sua gravidez. São contrários ao direito à interrupção da gestação. Consideram que as mulheres são apenas hospedeiras de fetos. É um argumento inclusive dos setores vinculados à Igreja Católica mais conservadora. É um conceito que vem no discurso dos setores que se dizem defensores da vida, quando, na verdade, são as mulheres que a defendem.
Acho horrível o conceito de mulher-hospedeira, porque retira das mulheres a capacidade de arbitrar, de exercer com autonomia as suas decisões. Assim como o conceito de mala que só carrega coisas dentro.
De modo que eu prefiro dizer que o conceito de Rede Cegonha é desumanizador, retira cidadania, retira direitos, quando as mulheres são simplesmente substituídas pela figura de uma cegonha.
Viomundo — A senhora acredita que esse conceito da Rede Cegonha decorra da interferência da Igreja Católica, como aconteceu na última eleição?
Telia Negrão – É possível. Eu preferiria acreditar que é um equívoco conceitual ou uma limitação da política pública, porque temo que o Estado brasileiro e as nossas políticas públicas estejam sendo influenciadas pelas igrejas conservadoras. Mas, infelizmente, parece uma sinalização da capacidade desses setores de influirem na política pública. E isso fere profundamente o caráter laico do Estado brasileiro.
Viomundo — O fato de na reunião de apresentação da Rede Cegonha a CNBB estar presente é um sinal de que se está ferindo o Estado laico?
Telia Negrão — A CNBB, ao lado de todas as agremiações religiosas brasileiras, tem direito de debater as políticas públicas. Agora, nós vimos com muita estranheza que apenas a CNBB estivesse representada naquela reunião, por que não as outras agremiações religiosas também?
As representantes da CNBB não emitiram nenhuma opinião. Apenas ficaram assistindo à troca de argumentos entre setores do governo brasileiro, o movimento de mulheres e as agências de saúde das Nações Unidas, como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). A OPAS se manifestou em defesa da integralidade, em defesa do cumprimento da plataforma do Cairo, de 1994, que tem uma abrangência maior do que aquela colocada no programa da Rede Cegonha.
A Rede Cegonha está muito aquém do Programa de População e Desenvolvimento, do Cairo, do qual o Brasil é signatário. O programa do Cairo prevê que as políticas públicas de saúde pública reprodutiva devam refletir a garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. E os direitos reprodutivos das mulheres contemplam os direitos das mulheres que querem ter filhos e os direitos das mulheres que não querem ter filhos.
Viomundo – Se de um lado a Rede Cegonha vai possibilitar acesso a saúde de qualidade às mulheres que desejam ter filhos, de outro, ela ignora as mulheres que não querem. A senhora não teme que a sociedade passe a ver essa ação do movimento feminista como algo contra a população mais pobre, mais desassistida?
Telia Negrão — Não, porque quando defendemos que as políticas de saúde reprodutiva devam ser amplas, estamos falando da grande maioria da população, não estamos falando dos direitos das feministas.
Não são as feministas que abortam. Aliás, as mulheres que se declaram feministas possivelmente são as que menos abortam, porque que têm acesso à informação e grande parte delas, aos insumos de saúde reprodutiva. Leia-se métodos contraceptivos.
As mulheres que têm as gestações não desejadas são as que necessitam SUS. São aquelas que não encontram no SUS informação, acesso a todos os insumos de planejamento reprodutivo. São aquelas que quando precisam fazer aborto, vão fazer aborto inseguro na aborteira ou na clínica clandestina. As outras mulheres, as que têm voz, quando precisam fazer aborto, procuram um hospital seguro. Eu, como pessoa privilegiada, se precisasse fazer um aborto, procuraria um bom hospital e pagaria para não correr o risco de morrer, porque é assim que funciona o aborto no Brasil.
As mulheres que têm dinheiro vão fazer o aborto nas clínicas mais sofisticadas e mais seguras. Quem precisa do SUS para planejamento familiar, anticoncepção de emergência e abortamento, são as mulheres pobres, as trabalhadoras brasileiras.
Então, nós não estamos nos distanciando das mulheres comuns do Brasil. Na verdade, a gente está mostrando que tem um outro lado, que é o direito de não ter filhos.
Existe um medicamento que se chama misoprostol – o famoso Citotec — , que pode diminuir o sofrimento de uma mulher que não quer ter filho com algumas pastilhas. No entanto, a venda desse medicamento em farmácia está proibida no Brasil. Ele só pode ser utilizado em hospital com receita médica . No entanto, se eu tiver dinheiro, eu compro e tomo esse medicamento. Temos um grave problema de justiça social no país.
Consequentemente, eu acho que nós temos uma agenda ampla a ser debatida no Brasil, que é mais do que melhorar as condições para as mulheres terem filhos. É oferecer às mulheres a possibilidade de terem os filhos que quiserem, quando quiserem, como quiserem, com quem quiserem, sempre nas melhores condições.
Viomundo – A Rede Cegonha é reducionista mesmo…
Telia Negrão — É uma visão reducionista dos direitos reprodutivos e da própria saúde saúde reprodutiva, que é mais do que o direito de ter filhos. É o direito de ter ou não filhos.
As mulheres foram substituídas por um mito, o pássaro que carrega o bebê prontinho, comprometendo o próprio sentido da atenção humanizada no pré-natal, parto e puerpério. Uma subestimação dos avanços conceituais no campo dos direitos reprodutivos, como direitos humanos, infantilização do processo reprodutivo centrado no bebê. Portanto, uma desumanização simbólica da política de saúde da mulher.
Viomundo – E agora?
Telia Negrão — Nós tivemos a garantia do Ministério da Saúde de que teremos 90 dias para continuar conversando sobre o conteúdo e a estratégia da Rede Cegonha. Estamos aguardando o recebimento do documento com a política como efetivamente foi anunciada. Em cima dele, elaboraremos propostas para a melhoria desse programa. Defendemos que essa política após sua versão definitiva ou na versão atual seja encaminhada para discussão no Conselho Nacional de Saúde e no Conselho Nacional de Direitos da Mulher.
Viomundo — O ministro Padilha concordou?
Telia Negrão – No dia 22 de março, a nossa conversa não foi com o ministro, que estava em Belém (PA), anunciando um programa nacional de câncer cérvico-uterino e de mama, que nós saudamos.
Na verdade, saudamos duas grandes iniciativas: o posicionamento da presidenta Dilma sobre violência no dia 8 de março e a prioridade para o câncer.
Quanto ao programa de saúde reprodutiva, nós queremos que ele seja ampliado com a visão de saúde integral. Queremos a reafirmação do compromisso do governo brasileiro com a política de atenção à saúde integral das mulheres e o fortalecimento da área técnica de saúde da mulher. Essa é a nossa agenda.
Viomundo — Do jeito que foi apresentado não é o caminho?
Telia Negrão — Nós achamos, insisto, que reduziu o foco de um problema que é muito mais amplo do que foi abordado.
Desde 2006, quando foi criado o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, nós nos colocamos como defensoras de uma abordagem integral da problema mortalidade materna no Brasil. Isso significa abordar não só as causas obstétricas, mas também as vinculadas às desigualdades de gênero, ou seja , a violência contra as mulheres.
No Rio Grande do Sul, a violência é a primeira causa de morte de mulheres no período da gestação e do puerpério. É também em Porto Alegre. Daí defendermos que a mortalidade materna seja vista dentro de visão mais ampla.
A forma como foi anunciada a Rede Cegonha, não ficou claro qual será o papel do Pacto Nacional , que foi a estratégia estabelecida para enfrentarmos e atingirmos as metas do milênio em relação à mortalidade materna. Infelizmente, a continuar apenas a visão obstétrica da Rede Cegonha, o Brasil não atingirá essas metas.
PS do Viomundo: A Rede Cegonha foi lançada em 28 de março. Desde o dia 29, tento ouvir o Ministério da Saúde sobre o tema. Foram vários e-mails e ligações para Brasília. A pessoa responsável está sem agenda para conceder a entrevista. Essa é a resposta que a assessoria de imprensa tem dado há dez dias. Hoje, 6 de abril, tentei novamente. Ainda nada. Conceição Lemes.
Telia Negrão: Governo Dilma ainda sem rumo na saúde das mulheres
por Conceição Lemes
Quarta-feira, 28 de setembro, é o Dia da Despenalização do Aborto na América Latina e Caribe.
Na quinta, sexta e sábado, acontece, em Porto Alegre, o XI Encontro Nacional da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. O tema central será a implementação da política nacional de atenção integral à saúde das mulheres e a retomada da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos.
“O governo da presidenta Dilma ainda não encontrou o seu rumo em relação à saúde das mulheres, pois não há uma estratégia nítida, definida”, avalia Telia Negrão, em entrevista exclusiva a esta repórter. “Até o momento o que se apresentou é uma política com ênfase na saúde materna e mais duas prioridades, o câncer de mama e do colo uterino.”
“A política de saúde integral das mulheres foi deslocada do centro, hoje ocupado pela Rede Cegonha, que, por sua vez, deixa de fora importantes elementos para enfrentar o seu principal objetivo, que é a redução da mortalidade materna”, observa Telia. “Por exemplo, o aborto inseguro, que poderia ser reduzido não apenas com planejamento familiar, já que a gravidez indesejada pode ocorrer inclusive devido à violência, mas também com o melhor acesso ao misoprostol, junto com muita informação, orientação e apoio para situações inesperadas. Uma medida sanitária indispensável.”
“Até hoje a Anvisa não explicou bem porque tanto rigor com a proibição da venda do misoprostol em farmácias, sendo que a Flasog [Federação Latinoamericana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia], a Figo [Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia] e própria OMS [Organização Mundial da Saúde] reconhecem que o misoprostol salva vida de mulheres”, avança Telia. “Na minha avaliação, trata-se de moralismo absurdo, completamente submisso à força da fé e da religião.”
Essas preocupações não são apenas de Telia Negrão. Cientista social, ela é secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e diretora da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). Eis a íntegra da nossa entrevista.
Viomundo – No texto que recebi sobre o XI Encontro, a Rede Feminista de Saúde fala em “retomada da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos para que se constituam debate contínuo e de ampla relevância no país”. Fala também que “houve uma retração na atenção integral à saúde da mulher”. O que está acontecendo?
Telia Negrão – Na década passada, particularmente após 2002, tivemos um ciclo de políticas públicas voltadas à saúde integral das mulheres. Houve atualização do antigo Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, o Paism. De um programa verticalizante evoluiu para uma política estratégica e transversal. Nasceu aí a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, ou Pnaism.
A adequação dessa política ao enfoque de relações de gênero e diversidade implicou também na identificação de novos sujeitos sociais das políticas de saúde, entre os quais as mulheres negras, com deficiências, lésbicas, mulheres privadas de liberdade, entre outras.
Outro elemento importante: a elaboração da política nacional de direitos sexuais e direitos reprodutivos, que levou a um patamar superior o tratamento dado às questões da reprodução e da sexualidade. Em vez de olhá-los apenas sob o enfoque da saúde e da moral passaram a vistos também no campo dos direitos, o que foi decisivo para dialogar com a sociedade.
Tudo isso ocorreu com a participação dos movimentos de mulheres em toda a sua diversidade. Foi também um momento de grande visibilidade para a questão do aborto. O governo honrou o compromisso assumido na primeira conferência de políticas para as mulheres, levando ao Congresso Nacional uma proposta de descriminalização do aborto. Esse cenário mudou um bocado nos últimos anos e mais nos últimos meses. Atualmente, não há interlocutores bem definidos para tratar desse tema no Ministério da Saúde e no próprio governo. Não é prioridade.
Viomundo — Em que termos o Ministério da Saúde mudou?
Telia Negrão — Bem, eu não acredito que a política se repita, ela pode se assemelhar num ciclo político e outro, mas com novos elementos e novos atores. Assim, a política se apresenta de outra forma.
Hoje há menos ênfase à saúde integral das mulheres. Privilegia-se o enfoque de saúde materna, mais em consonância com discurso internacional dos Objetivos do Milênio.
Em outras palavras. A política de atenção integral foi deslocada do centro, hoje ocupado pela Rede Cegonha, que, por sua vez, deixa de incorporar importantes elementos para enfrentar justamente o seu principal objetivo, que é a redução da mortalidade materna.
Explico. A Rede Cegonha não envolve todas as determinantes importantes de doenças e óbitos — a morbimortalidade — entre as mulheres grávidas. Ela deixa de fora, por exemplo, a questão do aborto inseguro, que poderia ser reduzido não apenas com planejamento familiar, já que a gravidez indesejada pode ocorrer inclusive devido à violência, mas também com o melhor acesso das mulheres ao misoprostol, junto muita informação, orientação e apoio para situações inesperadas. Uma medida sanitária indispensável.
Viomundo – Por que a questão do misoprostol é tão complicada?
Telia Negrão — Aí temos uma caixa fechada nas mãos da superpoderosa Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Até hoje ela não explicou bem porque tanto rigor com a proibição da venda do misoprostol em farmácias, sendo que a Flasog [Federação Latinoamericana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia], a Figo [Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia] e própria OMS [Organização Mundial da Saúde] reconhecem que o misoprostol salva vida de mulheres. Na minha avaliação, trata-se de moralismo absurdo, completamente submisso à força da fé e da religião.
Viomundo – Por quê?
Telia Negrão — O misoprostol coloca nas mãos das mulheres o poder de decidir se querem ou não manter uma gravidez, ou seja, delega autonomia às mulheres. Porém, aí entra um componente ideológico e cultural muito sério, pois as mulheres têm de ser vistas como pessoas capazes de tomar as próprias decisões sobre suas vidas e não seres tutelados e mantidos submissos, submetendo seus corpos para que outros deliberem.
Há coisas que me intrigam profundamente, e eu gostaria muito que a Anvisa explicasse motivo de ser tão rigorosa para controlar o medicamento que salva a vida das mulheres e tão liberal em relação a outros produtos. Basta entrar na maioria das farmácias no Brasil, leva-se de tudo.
O mesmo ocorre em relação aos agrotóxicos, que matam e adoecem pessoas e continuam à venda depois que se liberam as fórmulas. Não sou eu que estou falando. Eu vi isso na televisão, como milhões de brasileiros.
Mas prefere-se adotar a postura omissa, mantendo o mercado paralelo, clandestino, como única alternativa às mulheres, que pagam caro. Às vezes gastam o salário de um mês e levam farinha para casa. Mantém-se, assim, um comércio ilegal, cujo acesso coloca todas as mulheres em posição de criminosas. Ou seja, larga-se o problema nas mãos das mulheres. Em 2010, trabalhamos intensamente com a Anvisa, mas os resultados foram muito pequenos perto do esforço e do necessário.
Viomundo – Mas há também problemas no sistema de saúde, inclusive com a recusa de profissionais em fornecer a anticoncepção de emergência nos casos de violência sexual.
Telia Negrão — Parte dos profissionais de saúde, por razões de ordem religiosa ou outra, se nega a fornecer desde informações às adolescentes e jovens sobre seus direitos nos casos de violência sexual até a recusa da anticoncepção de emergência. Há também problemas de dispensação do medicamento em todos os serviços. Isso foi detectado em pesquisa realizada na Unicamp, com recursos do próprio Ministério. É importante lembrar que nos casos de estupro a mulher tem o direito a uma série de procedimentos, inclusive o aborto.
Atualmente, apenas 10% dos 700 serviços cadastrados no Ministério da Saúde realizam todos os procedimentos da Norma Técnica dos Agravos à Violência Sexual e Abortamento Previsto em Lei no Brasil.
Nesse aspecto, persiste um cenário conservador, que estava em mudança nos últimos anos, mas foi interrompido devido ao abandono e à redução de processos de capacitação contínua indispensável para tratar da saúde das mulheres. Manteve-se, assim, a tendência de não se reconhecer as mulheres como sujeitas de direito. Isso também ocorre com mulheres lésbicas, que acabam invisíveis dentro do sistema de saúde, quando não maltratadas.
Viomundo — Quais as implicações dessa estratégia sobre a atenção integral à saúde à mulher?
Telia Negrão — Como cientista política, acho que as políticas públicas devem corresponder à combinação de evidências e fatores sociais. E, na minha avaliação, as estratégias atuais de enfocar câncer de mama e colo de útero e saúde materno-infantil, além de darem conta das razões de adoecimento e morte das mulheres, não estão considerando as questões de gênero. Assim como não levam em consideração o direito das mulheres a uma vida sem violência e em condições de realizar suas escolhas sexuais e reprodutivas.
Infelizmente, a rede de atendimento às mulheres em situação de violência ainda é muito frágil, há resistências de toda ordem. Isso tem como consequência um sofrimento psíquico imenso, uso exagerado de medicações psiquiátricas, sem falar das sequelas por violências físicas.
Lembro a você que de 2003 a 2007 cerca de 40 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, segundo estudo da Confederação Nacional dos Municípios. Isso só se resolve com políticas preventivas sérias, profundas, consequentes, que mudem o comportamento dos brasileiros, nem que seja mostrando que violência contra as mulheres tem um preço para quem as comete.
Viomundo – No seu entender essa mudança de visão, que acaba tendo repercussões na vida das mulheres, teria o dedo da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e de setores evangélicos mais conservadores?
Telia Negrão — As igrejas em geral estão disputando a definição das políticas públicas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trabalham para operar alterações nas leis para reduzir direitos, impedir união civil entre pessoas do mesmo sexo, numa ação fundamentalista que lembra as Cruzadas da Idade Média. Afinal, a Igreja Católica se considera a guardiã da moral e da verdade, e tenta impor essa visão.
Viomundo — Quem perde com essa nova política?
Telia Negrão – Nada é definitivo e nós, quando criticamos e propomos, estamos querendo mudanças. Então quando você fala em nova política pode eventualmente parecer que ela já está determinada, cristalizada. Eu não acho isso.
No meu entender, o governo da presidenta Dilma ainda não encontrou o seu rumo em relação à saúde das mulheres, pois, não há uma estratégia nítida, definida. O que se apresentou até o momento é uma política com ênfase na saúde materna e mais duas prioridades. E, aí, acho que estamos mal, pois descentralizou a ênfase numa política mais transversal e estratégica.
Uma política nacional de saúde das mulheres tem duas possibilidades. Uma é desconsiderar a existência de uma política nacional de atenção integral. Aí, o governo tem de assumir que não a aceita. Portanto, rejeita o documento reelaborado pelo próprio PT nos governos passados a partir de uma base já existente. A outra possibilidade é cumprir essa política de atenção integral à saúde das mulheres.
Não podemos conviver com o mais ou menos quando o país está sendo constantemente condenado por organismos internacionais por não cumprir recomendações e documentos firmados. Isso é particularmente vergonhoso para nós, que temos uma mulher como presidenta. Ou será que não teve nenhuma relação entre a eleição de Dilma e uma nova perspectiva para as mulheres?
Viomundo — O que a Rede Feminista pretende fazer para levar essa discussão para a sociedade?
Telia Negrão — Após o nosso XI encontro, a Rede terá uma nova agenda prioritária para os próximos anos. E até o final do ano estaremos atuando nas conferências de saúde e de políticas para as mulheres para tentar ganhar corações e mentes em defesa da vida das mulheres brasileiras.
Fátima Oliveira: Governo Dilma submete corpo das brasileiras ao Vaticano
por Conceição Lemes
Em 28 de março de 2011, a presidenta Dilma Rousseff, acompanhada do ministro Alexandre Padilha, lançou, em Belo Horizonte (MG), a Rede Cegonha.
A farmacêutica Clair Castilhos a cientista social e jornalista Telia Negrão e a médica e escritora Fátima Oliveira , alertaram: a Rede Cegonha é retrocesso de 30 anos nas políticas de gênero, saúde integral da mulher e direitos reprodutivos e sexuais.
Do ponto de vista de atenção integral à saúde das mulheres – o paradigma oficial do Estado brasileiro desde a década de 1980 –, a Rede Cegonha é reducionista. Retoma a noção e a prática de saúde materno-infantil, coisa que em medicina nem existe mais.
Significa atenção à saúde da mãe e da criança como unidade indissociável, na qual as mulheres deixam de ser sujeitas principais do evento reprodutivo, o foco passa a ser o bebê. Um conceito antigo, conservador e do agrado absoluto da Santa Sé.
Meses depois, após muitos embates com os movimentos de mulheres via blogosfera principalmente, o Ministério da Saúde pareceu recuar. Ao emitir a Portaria, que formalizou a Rede Cegonha, expurgou-lhe o conceito de saúde materno-infantil. Mas só pareceu.
Em 26 de dezembro, a presidenta baixou a Medida Provisória 557, que institui o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna. Assinam-na também os ministros Padilha, Guido Mantega (Fazenda) e Miriam Belchior (Planejamento). Publicada no Diário Oficial da União do dia seguinte, já está em vigor.
Se ainda havia alguma dúvida sobre a direção da política do governo Dilma em relação à saúde da mulher, não há mais. A MP 557 sacramenta a guinada conservadora, bem orquestrada, iniciada com a Rede Cegonha. Um rumo antidemocrático, não republicano e autoritário.
Tudo sob os aplausos dos machistas, das mentalidades conservadoras dos mais diversos naipes e as bênçãos dos fundamentalistas religiosos.
Elegemos Dilma como presidenta de uma República laica, mas parece que quem dá as cartas na saúde das mulheres brasileiras é o ideário fundamentalista do tucano José Serra nas eleições de 2010, assessorado pelo bispo de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini.
“O governo Dilma ajoelhou e rezou”, afirma Fátima Oliveira. “Eu não tenho dúvida de que a MP 557 é a reza final. Acho que a Santa Sé não tem mais nada a pedir ao governo Dilma, porque ela já deu tudo.”
“A MP 557 traz de contrabando o nascituro, que é um dos grandes sonhos dos fundamentalistas religiosos, desde os tempos em que o ex-deputado federal Severino Cavalcanti (PP-PE) propôs o Estatuto do Nascituro”, critica Fátima. “O nascituro não existe sem a mãe. Logo, ao se cuidar da mãe, está se cuidando dele. Não tem sentido dar-lhe personalidade civil, como tenta a MP 557. É inconstitucional.”
“Estou convencida de que essa MP tem uma finalidade ideológica, religiosa. Ela foi feita exclusivamente para tentar passar como contrabando a personalidade civil do nascituro. Ela não tem outro objetivo que não esse”, vai mais fundo Fátima. “Quem escreveu a MP tinha o objetivo de arrumar um gancho legal para os conteúdos da bolsa-estupro e do Estatuto do Nascituro.”
“Infelizmente, o governo Dilma, que é a nossa primeira presidente mulher, está jogando no lixo todos os compromissos assumidos pelo Brasil nos espaços das Nações Unidas na área de saúde da mulher”, sentencia Fátima. “Junto, 30 anos de luta das mulheres brasileiras pela saúde, direitos sexuais e reprodutivos. Um retrocesso sem precedentes.”
Fátima é estudiosa, militante da saúde da mulher e autoridade no que fala. Voz ativa, dura e respeitada, nos principais fóruns nacionais e internacionais das duas últimas décadas, foi secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde de 2002 a 2006.
Guerreira que dá gosto, a avó de Maria Clara, Luana e Lucas e mãe de Maria, Débora, Lívia, Gabriel e Arthur, nasceu com cabelinhos nas ventas. Aos 16 anos (hoje tem 58), começou a batalhar pelos direitos das mulheres e um mundo mais solidário. Não parou mais.
Médica do pronto-socorro do Hospital de Clínicas da UFMG, onde dá duros plantões, Fátima integra os conselhos Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC).
Sentindo-se apunhalada pela MP 557, inicialmente esquivou-se dessa entrevista. Estava muito indignada. Não parava de repetir: “Não votamos em Dilma para o retrocesso. Se ela não dá conta ou não quer avançar, no mínimo, não deveria retroceder, desautorizar o nosso empenho para elegê-la numa eleição tão difícil, titanicamente ideológica”.
Mas acabei convencendo-a. Eis a íntegra da nossa conversa. A pedidos, vou tratá-la por você.
Viomundo – Nós começamos 2011, com o anúncio da Rede Cegonha. Em entrevista que nos deu, você foi taxativa: Ministério da Saúde adoça a boca do Vaticano. E agora, com a MP 557?
Fátima Oliveira – O governo ajoelhou e rezou. Eu não consigo entender por quais motivos um Estado laico se submete ao Vaticano dessa forma. O governo vem crescentemente cedendo às ideias fundamentalistas mais de extração católica. Eu não tenho dúvida de que a MP 557 é a reza final. Acho que a Santa Sé não tem mais nada a pedir ao governo Dilma, porque ela já deu tudo.
Viomundo – Como assim, doutora?
Fátima Oliveira – Desde que soube dessa malfadada Medida Provisória 557, eu me pergunto: por quê? Li e a reli várias vezes para tentar entender a sua razão. Fico chocada cada vez mais. Após ler exposição de motivos no domingo, fiquei totalmente estarrecida.
Viomundo – Por quê?
Fátima Oliveira – Primeiro, a exposição de motivos é fraca de argumentos, inconsistente, tem várias lacunas. Demonstra claramente que quem a escreveu ignora ou omite propositalmente os reais compromissos assumidos pelo Brasil nos espaços das Nações Unidas. Sobretudo os referentes à Conferência sobre População e Desenvolvimento, que aconteceu no Cairo, em 1994. Conhecida como Conferência do Cairo, ela é um marco. Consagrou globalmente conceitos de saúde e direitos reprodutivos.
Segundo, como uma MP que se propõe a reduzir a morte materna não menciona uma só vez a palavra aborto, a quarta causa de morte materna no país, e, ainda por cima, faz de conta que a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento(2004) não existe? Para mim, isso é um tipo de arrogância.
O aborto inseguro é um problema de saúde pública no Brasil. É como disse o embaixador do Brasil no Chile, Gelson Fonseca Júnior, chefe da delegação brasileira na Reunião da Mesa Diretora Ampliada do Comitê Especial de População e Desenvolvimento, realizada, em 2004, em Santiago: Sem cuidar do aborto inseguro, combater a mortalidade materna é uma miragem.
Terceiro, a MP 557 traz de contrabando o nascituro, que é o grande sonho dos fundamentalistas religiosos, desde os tempos em que o deputado Severino Cavalcanti propôs o Estatuto do Nascituro. O nascituro não existe sem a mãe. Logo, ao se cuidar da mãe, está se cuidando dele. Não tem sentido tratá-lo como ser autônomo, como está na MP 557. Está na contramão da Constituição Brasileira, de 1988, como mostrou brilhantemente a doutora Beatriz Galli na entrevista que deu a você.
Viomundo – O fato de a MP 557 fingir que não existe a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Aborto, elaborada pelo próprio Ministério da Saúde, é realmente muito estranho. Mais esquisito é incluir o nascituro, cuja personalidade civil não é reconhecida pela nossa Constituição. E só arrogância de quem fez a MP? Não haveria também ignorância, talvez até má-fé?
Fátima Oliveira – Pode ser um misto das três coisas: arrogância, ignorância e má-fé. Estou convencida de que essa MP tem uma finalidade ideológica, religiosa. Ela foi feita exclusivamente para tentar passar como contrabando a personalidade civil do nascituro. Ela não tem outro objetivo que não esse.
Viomundo – A presidenta Dilma e o ministro Padilha não estariam sendo enganados?
Fátima Oliveira – Não acredito. Acho que eles pensam assim. Ou os compromissos assumidos com os setores mais conservadores durante as eleições de 2010 exigem que atuem assim. Das duas uma. Como na poesia Ou Isto ou aquilo, de Cecília Meireles:
“Ou se tem chuva e não se tem sol,/ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,/ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,/quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa/estar ao mesmo tempo nos dois lugares!”
Viomundo – Na exposição de motivos da MP, está dito que o Brasil tem o compromisso com as Metas do Milênio de reduzir drasticamente a mortalidade materna até 2015 e que sem o cadastro é impossível atingí-la. Concorda?
Fátima Oliveira – A criação de um cadastro nacional de gestantes é abusiva. É invasão de privacidade. Não podemos admiti-la em hipótese alguma. Viola o sigilo médico.
Na verdade, o cadastro é mais um amém do governo aos fundamentalistas religiosos. Ter um cadastro nacional unificado com todas as mulheres que engravidam no Brasil é outro grande sonho deles. Está no projeto de lei da bolsa-estupro e no Estatuto do Nascituro. Eles querem poder acessar num só lugar quem está grávida nesse país, para verificar se aquela mulher vai levar aquela gestação até o fim. Será que o governo não sabe? Tenho dúvidas.
No Brasil, nós já temos vários sistemas de coleta de dados de saúde, inclusive do pré-natal. O governo não tem necessidade desse novo cadastro. Talvez precise ser aprimorado, coletar um ou outro dado a mais. Mas não criar um cadastro nacional com a vida sexual e reprodutiva das mulheres brasileiras, que pode acessado a qualquer hora, por qualquer pessoa.
Viomundo – E quanto ao argumento das Metas do Milênio?
Fátima Oliveira – O Brasil tem de cumprir as Metas do Milênio, sim, já que concordou com a pauta minimalista dos governos membros da ONU. Cabe ressaltar que as Metas do Milênio são uma pauta dos governos, que fracassaram no cumprimento dos Programas e Plataformas de Ação do ciclo de Conferências Sociais da ONU (Organização das Nações Unidas) da década de 1990. Nada a ver com os movimentos sociais, que fique explícito. Portanto, cumprir as Metas do Milênio não significa que não tem de cumprir também todas as outras plataformas.
Ou seja, as Metas do Milênio não anulam os compromissos assumidos anteriormente, como os das conferências do Cairo e Beijing [respectivamente, 1994 e 1995]. E as questões referentes à mortalidade materna, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos estão contidas em todas essas conferências, das quais o Brasil é signatário. Portanto, no Brasil, isso é também lei.
Aliás, uma MP dessa natureza jamais poderia ter sido feita sem a presença e a orientação do Itamaraty. Além de a diplomacia brasileira ser muito considerada nos espaços das Nações Unidas, o Itamaraty, em função do ciclo de Conferências Sociais da ONU, sabe as plataformas que assinou e os compromissos que assumiu. Eu sou testemunha disso, pois fui membro da delegação brasileira em muitas delas.
Viomundo – O ministro Padilha disse que quem não quiser não precisa se cadastrar, que o cadastro não é obrigatório...
Fátima Oliveira – Eu não preciso dos R$ 50 para pagar a condução para a um serviço de saúde. Você também não precisa, assim como certamente quase todas as leitoras do Viomundo. Já milhares e milhares de mulheres de baixa renda por esse Brasil afora necessitam desse recurso. Como elas vão conseguí-lo sem se cadastrar? Não vão.
Portanto, o cadastro é obrigatório, sim. Dizer o contrário é sofisma. Só não vai se cadastrar para receber o auxílio-transporte quem não precisa de assistência do SUS, ou seja, as mulheres com melhor condição financeira, que têm plano de saúde ou médico particular.
Mas, ao bem da verdade, para ser fiel à verdade, fica feio o ministro sair pela tangente porque para quem sabe ler, basta ler a MP, ela é absolutamente inteligível: o cadastro é para as gregas e troianas rsrsrsrsr, na medida em que é obrigatório para todos os serviços de saúde, públicos e privados. Sem choro, sem vela… É assim que reza a MP!
Viomundo – O que acha do auxílio de até R$ 50 para transporte?
Fátima Oliveira – É um compromisso do governo desde o anúncio da Rede Cegonha, no início de 2011. Eu nunca vou ser contra dar subsídio à população para algo que ela precisa. Muita gente precisa. Para algumas mulheres, vai ser pouco para custear as idas às consultas e exames do pré-natal, depois ao hospital, para ter o bebê. Para outras, o valor de R$ 50 talvez seja suficiente. Agora, se o governo tem, deve dar, sim. A pátria pode e deve ser mátria para quem necessita. Assim penso.
Afora o auxílio-transporte e a reafirmação do direito de acompanhante durante o trabalho de parto, no parto e no pós-parto imediato, não tem nada que se aproveite nessa MP no sentido que ela se propõe, que é o de auxiliar a combater a mortalidade materna.
Viomundo – Será que tudo isso foi colocado realmente com todas as letras para a presidenta Dilma?
Fátima Oliveira – Se não foi, é imperdoável. Mas eu não acho que ninguém do governo seja inocente, nem que a Dilma ou o Padilha tenham sido enganados. Acho que baixaram essa famigerada MP, porque queriam fazer isso. Pensam assim. Ou são obrigados, por “forças ocultas”, a pensar assim…
Quem escreveu a MP tinha o objetivo de arrumar um gancho legal para os conteúdos da bolsa-estupro e do Estatuto do Nascituro.
Em função desse embate virtual e na imprensa escrita que temos tido com o Ministério da Saúde [Rede Cegonha, Política Atenção Integral à Saúde da Mulher, descumprimento daNorma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento e MP 557] e de outras coisas, chegamos à triste constatação de que a postura de ouvido de mercador tem sido a regra. O que para a democracia é catastrófico.
Dá para imaginar um governo, que se declara popular e democrático, adota o silêncio, o desdém e a tentativa de desmoralização, quando setores respeitáveis da sociedade, com quilometragem inegável de luta, se posicionam em busca do melhor para a sociedade?
Bem, mas é o que tem acontecido. Aliás, tem sido a regra no campo da saúde. Até parece que não somos ninguém, que somos inimigos. Ao contrário. Quem está no governo, precisa saber que o governo Dilma é tão deles quanto nosso. Certamente há muita gente que não ocupa cargos que suou, sangrou em nome de uma proposta de país. Portanto, merece respeito, merece ser ouvida. E até lealdade, quando achamos que algo não é o melhor, temos de nos posicionar contra, porque queremos que o governo acerte cada vez mais. Ou essa não é uma regra da democracia?
Nem sempre quem está encastelado no governo sabe para que lado o vento sopra. Daí para ser um construtor de tempestades — por desconhecimento, para privilegiar a sua visão pessoal de mundo e eventualmente até por má-fé — é um pulo…
Viomundo – Por exemplo.
Fátima Oliveira – Causa-me irritação profunda a forma como esse governo vem tratando a questão do aborto.
Sempre que o ministro Padilha é questionado, ele se limita a dizer: Vamos cumprir a lei.
Na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, um dos temas importantes foi o aborto. Pois bem, a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República disse: Aborto, nós não vamos tratar aqui, porque aborto é com o Congresso Nacional.
Como um ministro da Saúde, que é médico e sabe o que é a carnificina do aborto clandestino no Brasil, diz apenas: Eu só vou cumprir a lei?
O ministro Padilha sabe, sim, que o combate à mortalidade materna passa não só pela atenção ao abortamento inseguro, mas passa também pela legalização do aborto no Brasil. Aí, vem com essa de “Vamos cumprir a lei” e estamos conversados!
Putz, eu não votei em Dilma para ouvir esse nível de conformismo, mas para avançar mais e mais na construção da cidadania, para remover entulhos restritivos à democracia, à laicidade. Para ouvir isso, teria sufragado o nome de José Serra. Ou não?
Ora me compre um bode, pois nem a lei tem sido cumprida! Em um ano de governo alguém ouviu falar quantos novos serviços de aborto previsto em lei foram instalados?
Alguém sabe quanto de recursos financeiros o Ministério da Saúde disponibilizou para tais serviços? Estamos ouvindo falar que o primeiro serviço previsto em lei instalado no Brasil, o do Hospital do Jabaquara na cidade de São Paulo, fechou ou vai fechar…
Como uma ministra cuja pasta tem o papel de conferir mais cidadania às mulheres diz que o aborto não tem nada a ver com o Executivo? Para mim revela inadequação ao papel que precisa desempenhar, além de querer interditar a nossa fala!
É como se eles dissessem: vocês que se lasquem. E deixam a gente se lascar bem lascada, porque nem o aborto previsto em lei está sendo cumprido.
Viomundo – Insensibilidade da parte deles? Só de pensar que por ano são realizados muitos milhares de abortamentos clandestinos, inseguros, que matam centenas e centenas de mulheres, não dá para a gente ser hipócrita e fazer de conta que essa tragédia não acontece aqui…
Fátima Oliveira – Seriam esses ministros ignorantes do seu papel? Ou estariam nos chamando de burras?
Um governo popular e democrático tem o dever de cumprir a lei. Mas tem o dever também de fazer avançar a cidadania.
Quem é que não sabe que para mudar a lei tem de passar pelo Congresso? Nós não estamos falando em legalização do aborto. A Dilma já disse que não vai mexer com isso. Então não vamos perder o nosso tempo.
Mas nós queremos o que conquistamos nessa área. A aplicação da norma técnica de atenção humanizada aos casos de aborto previstos em lei, o que não vem acontecendo. Pior. O governo esconde-a propositalmente na MP 557, que cuida de morte materna.
Não foi para isso que nós votamos na presidenta Dilma. Não foi para isso que nós suamos e sangramos, não. Nós votamos nela com a convicção de que a cidadania das mulheres brasileiras seria um ponto importante, que os direitos conquistados seriam respeitados e seria possível avançar em muitos aspectos.
Viomundo – O que achou de a MP ter sido baixada no dia 26 de dezembro?
Fátima Oliveira – Já te disse e repito: tudo que é feito na calada da noite, na calada dos intervalos de recesso de final de ano, a gente tem de desconfiar.
Achei de uma maldade tão grande baixar um documento tão sério num momento em que as pessoas estão descansando, vão tirar uns dias com as suas famílias. Isso faz parte da cultura brasileira dos feriados de final de ano…
O governo tinha certeza de que a MP iria dar problemas, por isso deixou-a para essa época do ano. A data foi escolhida a dedo e quem escreveu a MP sabia o que queria colocar ali. Tanto que colocou.
Não há justificativa dos pontos de vista médico, de saúde e político, para essa MP. Ela é injustificável, ainda mais na última semana do ano. Um governo democrático não pode se comportar dessa forma. Por que não fez uma MP de Responsabilidade Sanitária? Com certeza com ela mudaríamos para melhor muitos aspectos da atenção à saúde, inclusive mortalidade materna. Por que não encarar de vez uma MP resolutiva de certeza na área da saúde?
Viomundo – Você continua indignada, zangada, como estava na última quinta-feira, 29 de dezembro, quando começou a criticar a MP 557 no twitter?
Fátima Oliveira – Fiquei doente esses dias. Zangada, não estou. Indignada, sim. Estou me sentindo absolutamente apunhalada. Embora eu seja uma crítica feroz da Rede Cegonha, desde a primeira hora, subestimamos o viés ideológico do caminho que o Ministério da Saúde começava a tomar. Esse caminho se aprofundou nessa MP.
Infelizmente, repito, o governo Dilma, que é a nossa primeira presidente mulher, está jogando no lixo todos os compromissos assumidos pelo Brasil nos espaços das Nações Unidas na área de saúde da mulher. Junto, a luta das mulheres brasileiras pela atenção à saúde integral, direitos sexuais e direitos reprodutivos, que começou em plena ditadura militar. Um retrocesso de 30 anos, sem precedentes.
Viomundo – Na verdade, um viés ideológico-religioso, sendo os nossos corpos o objeto de negociação.
Fátima Oliveira – Exatamente. Eu tenho moral para falar o que vou dizer agora, pois na época da Constituinte, eu coletei muita assinatura para a liberdade de religião no Brasil.
Eu defendo o direito de toda autoridade tenha a religião que quiser. Só que religião é uma coisa da intimidade da pessoa, pra seu consumo interno. As religiões dos governantes não podem ser a régua do exercício do poder público. Nos cargos públicos, as questões religiosas não podem ser condutoras das políticas públicas.
Esse governo já deu demonstrações demais a quem está submetido quando o assunto são os corpos das mulheres. Está na hora de dizermos ao governo que os nossos corpos nos pertencem e não podem ser moeda de troca, com quem quer que seja.
Essa MP foi a gota d’água num oceano. Nós queremos que a saúde da mulher nesse país seja tratada como deve ser tratada numa república laica, democrática e de avanços de direitos.
Viomundo – Qual a saída?
Fátima Oliveira – Numa democracia laica, diante de tantos problemas que estamos vendo no campo da saúde e os levantados na área do direito pela doutora Beatriz Galli, manda o bom senso que essa MP não vá adiante.
No meu entender, só existe uma saída: a presidenta Dilma retirar essa MP e rediscutir a questão de como melhorar a política de combate à morte materna com setores da sociedade que têm capacidade para isso. No Brasil, há muita gente que pode contribuir para que o país possa cumprir os seus compromissos com as Metas do Milênio e com plataformas das Conferências Sociais da ONU.
Viomundo – De que forma?
Fátima Oliveira – Esse governo tem de descer do salto. E chamar uma discussão ampla com os diferentes setores da sociedade, inclusive com o Itamaraty.
O ministro Padilha é a simpatia em pessoa, ar de boa gente, mas tem se mostrado equivocado e autoritário quando o assunto é saúde da mulher. Um horror! Basta dizer que, quando do anúncio da Rede Cegonha, se pediu que ele abrisse um espaço de discussão amplo na sociedade. Ele não chamou para esse debate. Nós queremos um debate real e não virtual.
Agora, na medida provisória, ele tenta transformar retrocessos em lei. Não foi para esse tipo de comportamento e nem um governo cheirando a mofo medieval, comandado pela Capela Sistina que a gente saiu às ruas para pedir votos para Dilma.
Um pouco antes das últimas eleições presidenciais, eu escrevi o seguinte num artigo para o Viomundo:
“Em 2010 em nosso país o que está em jogo é também a luta por uma democracia que se guie pela deferência à liberdade reprodutiva e que considere a maternidade voluntária um valor moral, político e ético, logo respeita e apoia as decisões reprodutivas das mulheres, independente da fé que professam. Nada a ver com a escolha de quem vai mandar mais no território dos corpos das mulheres! Então, xô, tirem as mãos dos nossos ovários!”
Pois não é que agora, com a MP 557, o governo Dilma quer mandar nos nossos corpos? Eu estou me sentindo apunhalada, mesmo. E o que é pior: pelas costas!
PS do Viomundo: Provavelmente publicaremos nesta sexta-feira, 6 de janeiro, a entrevista que fiz sobre a MP 557 com o dr. Fausto Pereira dos Santos, assessor especial do ministro Alexandre Padilha. A postagem amanhã está dependendo de dados adicionais que solicitei ao dr. Fausto e à assessoria de imprensa do Ministério da Saúde.
PS 2 do Viomundo: O dr. Fausto, via assessoria de imprensa, nos enviou no final dessa quinta-feira as respostas complementares. Mas, como faltam melhores esclarecimentos de algumas delas e o assunto é muito importante, postaremos na segunda-feira a entrevista com o assessor do ministro Padilha.
Ps3 do Viomundo: A gente lê por aí — e se diverte — com as tentativas oblíquas de desqualificar qualquer coisa que não seja adesismo governista instantâneo. Sorry, a gente não nasceu para reproduzir release.
Maria José Rosado: O que é isso, Presidenta?
por Maria José Rosado, das Católicas pelo Direito de Decidir
É costume dizer que no fim do ano não se deve comer peru ou qualquer outra ave que “cisque para trás”, pois significaria arriscar-se a viver todo o novo ano andando de marcha a ré.
Neste final de 2011, enquanto no Uruguai, seguindo o que aconteceu no México e na Colômbia, o Senado aprova a descriminalização do aborto, no Brasil vivemos o retrocesso.
Nesses países, como também na Argentina, amplas discussões na sociedade apontam na direção de mudanças legais que efetivem o respeito aos direitos humanos das mulheres. Em nosso país, uma Medida Provisória – instrumento herdado do autoritarismo da ditadura militar – decretada em momento oportuno para evitar o debate e a crítica, quer tornar compulsória a maternidade para as mulheres brasileiras.
Nenhum artifício de retórica poderá convencer de que a Medida não diz o que efetivamente diz: Todas as gestantes brasileiras estarão sob a vigilância do Estado e das forças mais reacionárias da sociedade para impedir que a maternidade se realize em nosso país de forma digna do ser humano: como resultado de escolha e decisão pessoal.
A MP assinada pela Presidenta implanta no Brasil a figura da maternidade constrangida. A criação de um cadastro nacional de gestantes havia já sido proposto por um ex-deputado que declarou alto e bom som seu objetivo: combater o aborto. Ora, o Brasil é signatário de documentos internacionais em que se comprometeu a respeitar os direitos das mulheres, especialmente em relação à sua capacidade reprodutiva.
O que leva então o Governo, na figura de sua mais alta representante, a desrespeitar suas próprias decisões políticas? Estaremos diante de uma teocracia disfarçada? Foram públicas e explícitas as pressões de setores religiosos conservadores, contrários à vida das mulheres na última campanha eleitoral. Será então esse cadastro nacional parte do cumprimento de compromissos assumidos naquele momento com tais setores?
Se assim é, repetimos a pergunta: O que é isso, Presidenta? Nossa Constituição, fruto de debate democrático, estabelece respeito às religiões, mas impede o Estado de guiar-se por princípios que impeçam a realização das liberdades individuais, inclusive a de não professar qualquer crença. Não se pode impor doutrinas e valores particulares de grupos religiosos a toda a sociedade. É vergonhoso que, na América Latina, seja o Brasil o país do retrocesso em relação à vida das mulheres, aos seus direitos e à possibilidade da realização livre e desejada da maternidade.
Maria José Rosado é presidenta ONG Católicas pelo Direito de Decidir.