Jean Wyllys
Soube que o colega João Campos – fundamentalista cristão e deputado
federal pelo PSDB de Goiás – andou coletando assinaturas para
apresentar o que eu chamo de “PEC da Teocracia” meses atrás, quando
fui abordado por um dos muitos coletores de assinaturas para PECs e
frentes parlamentares que se espalham pelos corredores da Câmara dos
Deputados (daqui a pouco eu explico por que eu assim “batizo” a PEC).
Como não assino proposição alguma sem, antes, ler seu conteúdo, assim
que me dei conta do que pretende a PEC de Campos (e o que ela pretende
me dá arrepios de pavor), não só recusei-me a subscrevê-la como passei
a alertar os deputados aliados do perigo que a proposta representa.
Apesar de minha iniciativa, o deputado João Campos conseguiu o número
de assinaturas necessário para protocolar sua “PEC da Teocracia”, em
parte porque a bancada cristã na Câmara é numerosa, em parte porque é
grande o número de deputados que, na pressa, assinam qualquer
proposição sem ao menos ler seu conteúdo.
A notícia da “PEC da Teocracia” causou alvoroço entre os setores
progressistas da sociedade e nas redes sociais da internet. Choveram
críticas ao propositor da emenda constitucional e, sobretudo, aos
deputados do PT, PV, PC do B e PPS – partidos considerados de esquerda
e históricos defensores de um estado laico e democrático de direito –
que a subscreveram. Constam lá, por exemplo, as assinaturas dos
petistas Domingos Dutra e Nelson Pellegrino, dois parlamentares que,
aparentemente, jamais endossariam qualquer proposição legislativa que
pusesse em risco a laicidade do Estado e o bem-estar de minorias
sociais e religiosas.
Alguns desses parlamentares de “esquerda” argumentaram, em defesa
própria, que assinaram a “PEC da Teocracia” apenas para “fomentar o
debate”; que não pretendem votar pela sua aprovação… O curioso é que
esses mesmos parlamentares não assinaram a PEC do Casamento Civil
Igualitário, que não oferece qualquer perigo à laicidade do Estado nem
às liberdades individuais, muito pelo contrário. Não assinaram nem
mesmo para “fomentar o debate” na sociedade em torno da negação de
direitos fundamentais à comunidade homossexual. Haja incoerência…
Mas voltemos à PEC n° 99 de 2011: a “PEC da Teocracia”… Eu assim a
batizo porque ela pretende que as “associações religiosas” possam
“propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de
constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição
Federal”. O que isso significa? Que, caso essa PEC venha a ser
aprovada, as “associações religiosas” passam a fazer parte do seleto
rol dos legitimados pela Constituição de 1988 a darem início ao
processo de “controle concentrado de constitucionalidade”: (a) o
Presidente da República; (b) a Mesa do Senado Federal; (c) a Mesa da
Câmara dos Deputados; (d) o Procurador-Geral da República; (e)o
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (f) partido
político com representação no Congresso Nacional; (g) Mesa de
Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
(h) Governador de Estado ou do Distrito Federal; e (i) confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Qual seria o sentido em se admitir “associações religiosas” entre os
legitimados a darem início ao processo de “controle concentrado de
constitucionalidade” se a finalidade institucional das entidades
confessionais não é promover a supremacia da Constituição, mas, sim,
desenvolver a fé em seus adeptos? Ora, se o Estado é laico – como o é
o brasileiro desde 1980 – questões de cunho moral e místico não podem
ser parâmetro nem para a elaboração das normas nem para o seu
controle. Valores espirituais não podem ser impostos normativamente ao
conjunto da população, nem de forma afirmativa nem por via reflexa do
controle, sob pena de violar a laicidade do Estado. A laicidade
significa que as religiões devem estar protegidas da interferência
abusiva estatal em suas questões internas e, por outro lado, que o
Estado deve ser neutro em relação às diferentes concepções religiosas
e deve estar a salvo de tais influências indevidas. Em uma sociedade
multicultural e plurirreligiosa como a nossa, em que convivem pessoas
das mais diferentes crenças (e também aquelas que não professam credo
algum e que devem ser reconhecidas e respeitadas!), a laicidade é
indispensável para que todos sejam tratados com o mesmo respeito e
consideração.
O fundamentalista João Campos refere-se em sua PEC, malandramente, a
“associações religiosas”. Porém, deve-se tomar essa expressão por
“igrejas cristãs”, pois é certo que ele e quejandos não estão
incluindo, aí, os centros de umbanda ou espíritas, os terreiros de
candomblé nem as mesquitas islâmicas, pois, não é segredo para ninguém
que o esporte predileto dos fundamentalistas cristãos é, depois da
perseguição aos homossexuais, a demonização das religiões
concorrentes. A “PEC da Teocracia” será então o endosso, por parte do
Estado, das religiões cristãs… Ora, o endosso do Estado de alguma
religião fará com que aqueles que não a adotam tornem-se cidadãos de
segunda classe. As normas religiosas, na media em que são
compartilhadas por apenas alguns membros da população, e na medida em
que pertencem à esfera moral e não jurídica, não podem ser impostas
por meio das leis do Estado, nem servir de parâmetro de controle para
estas.
A “PEC da Teocracia” viola cláusula pétrea dos direitos e garantias
individuais. Ou seja, de acordo com a literalidade da Constituição
Federal, qualquer proposta de emenda constitucional que tenda a esse
tipo de violação não pode sequer ser apreciada. Na hipótese de as
associações religiosas serem legitimadas para propor ações de
inconstitucionalidade, os critérios adotados para esse controle seriam
valores morais de uma determinada confissão - e isso aniquilaria a
inviolabilidade de crença de todos os outros cidadãos que não
compartilham da mesma fé.
Na prática, caso seja aprovada, a “PEC da Teocracia” servirá para que
fundamentalistas cristãos como João Campos e quejandos tenham mais um
instrumento para abortar leis ou atos normativos que estendam a
cidadania a homossexuais ou procurem preservar sua dignidade humana.
Ou ainda proposições legislativas que objetivem a descriminalização da
maconha (bandeira histórica do PV) e a legalização do aborto por
anencefalia. A emenda nem é mesmo uma proposição que visa à
pluralidade das concepções religiosas. Pelo contrário: é fruto de uma
onda encampada por um segmento que pretende impor seus credos — que
devem pertencer à esfera privada — a toda a coletividade.
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