24 de novembro de 2011

O começo de uma teocracia no Brasil?



Jean Wyllys


Soube que o colega João Campos – fundamentalista cristão e deputado


federal pelo PSDB de Goiás – andou coletando assinaturas para

apresentar o que eu chamo de “PEC da Teocracia” meses atrás, quando

fui abordado por um dos muitos coletores de assinaturas para PECs e

frentes parlamentares que se espalham pelos corredores da Câmara dos

Deputados (daqui a pouco eu explico por que eu assim “batizo” a PEC).

Como não assino proposição alguma sem, antes, ler seu conteúdo, assim

que me dei conta do que pretende a PEC de Campos (e o que ela pretende

me dá arrepios de pavor), não só recusei-me a subscrevê-la como passei

a alertar os deputados aliados do perigo que a proposta representa.

Apesar de minha iniciativa, o deputado João Campos conseguiu o número

de assinaturas necessário para protocolar sua “PEC da Teocracia”, em

parte porque a bancada cristã na Câmara é numerosa, em parte porque é

grande o número de deputados que, na pressa, assinam qualquer

proposição sem ao menos ler seu conteúdo.



A notícia da “PEC da Teocracia” causou alvoroço entre os setores

progressistas da sociedade e nas redes sociais da internet. Choveram

críticas ao propositor da emenda constitucional e, sobretudo, aos

deputados do PT, PV, PC do B e PPS – partidos considerados de esquerda

e históricos defensores de um estado laico e democrático de direito –

que a subscreveram. Constam lá, por exemplo, as assinaturas dos

petistas Domingos Dutra e Nelson Pellegrino, dois parlamentares que,

aparentemente, jamais endossariam qualquer proposição legislativa que

pusesse em risco a laicidade do Estado e o bem-estar de minorias

sociais e religiosas.



Alguns desses parlamentares de “esquerda” argumentaram, em defesa

própria, que assinaram a “PEC da Teocracia” apenas para “fomentar o

debate”; que não pretendem votar pela sua aprovação… O curioso é que

esses mesmos parlamentares não assinaram a PEC do Casamento Civil

Igualitário, que não oferece qualquer perigo à laicidade do Estado nem

às liberdades individuais, muito pelo contrário. Não assinaram nem

mesmo para “fomentar o debate” na sociedade em torno da negação de

direitos fundamentais à comunidade homossexual. Haja incoerência…



Mas voltemos à PEC n° 99 de 2011: a “PEC da Teocracia”… Eu assim a

batizo porque ela pretende que as “associações religiosas” possam

“propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de

constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição

Federal”. O que isso significa? Que, caso essa PEC venha a ser

aprovada, as “associações religiosas” passam a fazer parte do seleto

rol dos legitimados pela Constituição de 1988 a darem início ao

processo de “controle concentrado de constitucionalidade”: (a) o

Presidente da República; (b) a Mesa do Senado Federal; (c) a Mesa da

Câmara dos Deputados; (d) o Procurador-Geral da República; (e)o

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (f) partido

político com representação no Congresso Nacional; (g) Mesa de

Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

(h) Governador de Estado ou do Distrito Federal; e (i) confederação

sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.



Qual seria o sentido em se admitir “associações religiosas” entre os

legitimados a darem início ao processo de “controle concentrado de

constitucionalidade” se a finalidade institucional das entidades

confessionais não é promover a supremacia da Constituição, mas, sim,

desenvolver a fé em seus adeptos? Ora, se o Estado é laico – como o é

o brasileiro desde 1980 – questões de cunho moral e místico não podem

ser parâmetro nem para a elaboração das normas nem para o seu

controle. Valores espirituais não podem ser impostos normativamente ao

conjunto da população, nem de forma afirmativa nem por via reflexa do

controle, sob pena de violar a laicidade do Estado. A laicidade

significa que as religiões devem estar protegidas da interferência

abusiva estatal em suas questões internas e, por outro lado, que o

Estado deve ser neutro em relação às diferentes concepções religiosas

e deve estar a salvo de tais influências indevidas. Em uma sociedade

multicultural e plurirreligiosa como a nossa, em que convivem pessoas

das mais diferentes crenças (e também aquelas que não professam credo

algum e que devem ser reconhecidas e respeitadas!), a laicidade é

indispensável para que todos sejam tratados com o mesmo respeito e

consideração.



O fundamentalista João Campos refere-se em sua PEC, malandramente, a

“associações religiosas”. Porém, deve-se tomar essa expressão por

“igrejas cristãs”, pois é certo que ele e quejandos não estão

incluindo, aí, os centros de umbanda ou espíritas, os terreiros de

candomblé nem as mesquitas islâmicas, pois, não é segredo para ninguém

que o esporte predileto dos fundamentalistas cristãos é, depois da

perseguição aos homossexuais, a demonização das religiões

concorrentes. A “PEC da Teocracia” será então o endosso, por parte do

Estado, das religiões cristãs… Ora, o endosso do Estado de alguma

religião fará com que aqueles que não a adotam tornem-se cidadãos de

segunda classe. As normas religiosas, na media em que são

compartilhadas por apenas alguns membros da população, e na medida em

que pertencem à esfera moral e não jurídica, não podem ser impostas

por meio das leis do Estado, nem servir de parâmetro de controle para

estas.



A “PEC da Teocracia” viola cláusula pétrea dos direitos e garantias

individuais. Ou seja, de acordo com a literalidade da Constituição

Federal, qualquer proposta de emenda constitucional que tenda a esse

tipo de violação não pode sequer ser apreciada. Na hipótese de as

associações religiosas serem legitimadas para propor ações de

inconstitucionalidade, os critérios adotados para esse controle seriam

valores morais de uma determinada confissão - e isso aniquilaria a

inviolabilidade de crença de todos os outros cidadãos que não

compartilham da mesma fé.



Na prática, caso seja aprovada, a “PEC da Teocracia” servirá para que

fundamentalistas cristãos como João Campos e quejandos tenham mais um

instrumento para abortar leis ou atos normativos que estendam a

cidadania a homossexuais ou procurem preservar sua dignidade humana.

Ou ainda proposições legislativas que objetivem a descriminalização da

maconha (bandeira histórica do PV) e a legalização do aborto por

anencefalia. A emenda nem é mesmo uma proposição que visa à

pluralidade das concepções religiosas. Pelo contrário: é fruto de uma

onda encampada por um segmento que pretende impor seus credos — que

devem pertencer à esfera privada — a toda a coletividade.


















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