O pró-ativismo das agências de publicidade brasileiras na gestão do machismo.
A grande luta das mulheres não é contra os homens. É contra a lei da gravidade: esses dizeres são da propaganda de uma marca famosa e muito consumida de xampu (exibida em 2006) . O comercial apresentava uma sequência de cenas de mulheres fazendo ginástica, tratamentos estéticos, usando corpetes e outros instrumentos para manter o bumbum e seios empinados. As imagens se somavam a uma narrativa claramente anti-feminista. As verdadeiras heroínas, segundo o comercial, estavam na liga das mulheres contra gravidade.
Oscar Wilde dizia: “cínico é aquele que conhece o preço de tudo e não reconhece valor em nada”. Utilizando-se de poucas palavras esse anúncio convertia em LUTA o comportamento vão das mulheres treinadas para serem ancas, pernas e seios — com conotação de luta social — e convertia o feminismo e todo seu conteúdo emancipatório numa vã “guerra dos sexos”. Como se a luta feminista fosse contra os homens e não contra o status quo que homens e mulheres ajudam a manter. Além de ridicularizar o feminismo, a narrativa exaltava a condição de “objeto” habitualmente atribuída às mulheres. Como objetos perecíveis que são, as mulheres devem lutar para permanecerem enxutas. Nada de bradar contra o machismo. A verdadeira luta das mulheres é contra aquilo que não se pode mudar... A gravidade... A decrepitude física. Quanto aquilo que podemos mudar — como o comportamento masculino e feminino — o imperativo era: essa luta não é importante; as feministas estavam erradas; se preocupe com sua condição de objeto e não com a sua condição social.
Incrível como os imperativos sexistas são sempre os mesmos e como o mundo publicitário se mantêm alheio ao crescimento da violência contra mulher, assim como às conquistas importantes alcançadas por meio do movimento social que essa propaganda de xampu teimava em depreciar.
Cinco anos mais tarde, pouca coisa mudou na TV, o sexismo continua sendo a tônica dos “reclames nossos de cada dia”. Cá estou tentando repercutir algum senso crítico sobre as propagandas sexistas produzidas recentemente. A exemplo da propaganda da Hope, devidamente esculhambada no post abaixo.
Uma coisa que me deixa intrigada é a dinâmica de trabalho das agências publicitárias brasileiras, que se autoproclamam “super-criativas”, mas recorrem aos mesmo recursos ano após ano. Talvez acreditando que se deram certo no passado, darão no futuro. Quando tento imaginar o expediente de trabalho das glebas publicitárias, sempre imagino um ambiente clean, bem decorado, cheio de gente pedante praticando o “ócio criativo”. Com o predomínio do ócio sobre o criativo. Um lugar onde os publicitários passam o dia coçando seus sacos e com tanto estímulo descobrem o poder do “falo”. Derivam daí as propagandas de homem pra homem : onde se observa a valorização do universo masculino. Nesse tipo de propaganda, o homem é o sujeito da ação ou da situação, enquanto as mulheres (em geral modelos) são meros acessórios ou desempenham a função de suas acompanhantes, a exemplo das propagandas de cerveja. Nas propagandas de homem pra mulher o que chama atenção é a linguagem “pedagógica”. Os anúncios dos produtos servem para ensinar às mulheres como limpar o chão, o banheiro, como lavar as roupas, cuidar da saúde da família, como ficar cheirosa, depilada, higienizada e bonita para agradar os homens. Uma propaganda de chinelos de borracha foi além, colocando galã da Globo para ensiná-las COMO NÃO PROCEDER DURANTE A TPM. Ainda não descobri qual a misteriosa ligação entre Havaianas e TPM, mas os coçadores de saco a estabeleceram. Ou será que estão usando os 30 segundos milionários do horário nobre da TV para mandar seu recado às mulheres? Do tipo: não chateia e vê se recalca sua TPM!
Existe ainda a propaganda “de mulher pra mulher”. Essas também não se salvam...
Verão de cabeça feita é o título da redação do informe publicitário O Sol Nasce para Todas que diz: A linha Dove está trazendo novas armas pra você arrasar. (...) O que significa pele, corpo e cabelos muito bem tratados, sim, senhora. E por falar em sim, senhora, pare de dizer amém pra tudo o que a dona mídia fala pra você. Você é mais do que um par de medidas, um corpo dourado e um cabelo milimetricamente alisado à chapinha. Nada contra, se você gosta disso. Mas o verão chega mais democrático e abraça também os cabelinhos mais rebeldes, os corpos mais cheinhos, as branquelas (quem inventou essa palavra, por Deus!), os peitos pequenos, os siliconados ou os naturalmente grandes. Seja lá onde você se enquadra. Você é mais. Beleza é um conceito amplo, que também serve pra cabeça. Cabeça feita, cabeça boa. O que quer dizer você feliz com você, com os cuidados que você dispensa ao seu corpo, com a sua beleza própria e particular. Quem resiste ao charme de um olhar confiante? Quem resiste a uma mulher mais inteira, mais convencida do que é e daquilo que pode conquistar? Você não tem medidas. Você é única. Vá pra praia, vá pra noite, simplismente vá. Dove vai com você!.
Quem assina esse “hino à democracia Dove” é Cos Tanza Pascolato uma famosa consultora de moda, dona de uma agência de modelos. Apesar das model’s agenciadas pela dona Tanza estarem adequadas ao Sistema Internacional de Pesos e Medidas, na propaganda ela diz: Você é mais que um par de medidas. Cinismo, sarcasmo ou hipocrisia? Visto que esses “atributos” são muito valorizados no meio publicitário. Com essas palavras a “expoente da elite da moda brasileira” anima o populacho feminino a ir à praia sem receio dos preconceitos alheios: Dove vai com você. A foto que acompanha a redação da dona Tanza traz um grupo de mulheres jovens e sorridentes. Cada uma representando um biótipo “fora do padrão”: uma negra (pois essa etnia costuma não ser incluída nos padrões de beleza), que é a dos “cabelos rebeldes” (eufemismo que veio substituir a expressão racista cabelo ruim); uma mulher tão magra e tão alta quanto a Gi Bündchen, mas sem aqueles peitões; e uma "mulher cheinha", mas que se “esvaziar” cinco quilos “fica no ponto”. No fundo um cenário que lembra a praia, arena democrática, onde todos os corpos têm igual direito de se exibir com pouca roupa. A foto dos produtos Dove trazia ainda os dizeres: Nova Linha Dove Verão, Trata bem todas as mulheres.
Propagandas como essa incitam as mulheres a consumirem cosméticos para se sentirem mais confiantes — como se amor-próprio pudesse ser vendido em potinhos plásticos. A verdade é que esses anúncios cheios de “boas intenções” com as “questões femininas”, que buscam “dialogar” com as “mulheres comuns” — transformando a crítica sincera à tirania da beleza em “lirismo comercial” — não passam de falácia. Trata-se de um tipo específico de merchandising capaz de parasitar a controvérsia e corrompê-la em beneficio próprio.
Recentemente um merchan de mulher pra mulher desencadeou uma reação curiosa. Cerca de 300 homens entraram na justiça contra uma propaganda de esponja de aço intitulada “Mulheres evoluídas”. Eles se sentiram ofendidos com os clichês presentes no comercial protagonizada pelas humoristas Marisa Orth, Dani Calabresa e Monica Iozzi, onde, entre outras coisas, os homens são comparados a cães que precisam ser adestrados à jornalada. Em primeiro lugar, as mulheres que deviam ficar ofendidíssimas com essa propaganda. De acordo com o diretor de marketing da Bombril, tratar-se-ia de uma estratégia pontual em homenagem às mulheres. Fala sério! Homenagear as mulheres sugerindo que “mulheres evoluídas” são aquelas que agem como os machistas da pior espécie (trajando aquele terno “black-chauvinista” estilo CQC). Dispenso esse tipo de homenagem. Sem falar que, em última análise, a mensagem dessa sátira é “quem manda em casa é a mulher”, um arremedo que propõe que as mulheres evoluíram, mas continuam sendo as rainhas (amorosas ou tirânicas) do lar.
Toda propaganda visa estimular o consumo, portanto, sua função principal não é divertir, emocionar, instruir ou coisa que o valha. Alguns publicitários chegam a defender esse tipo de asneira, mas sua função real é revestir os objetos de significados que não lhes pertence. Na maioria das vezes esses significados vão além da utilidade do próprio objeto, transformando-o em símbolo de status ou de modo de vida. Sob os holofotes os objetos manufaturados, por exemplo, deixam de representar as relações desiguais entre capital e trabalho. Afinal, o I-phone que o consumidor contempla e aprende a desejar, através da propaganda, deve ser desvinculado do produto fabricado mediante exploração de mão-de-obra infantil, escrava ou subempregada. Neste sentido, os marketeiros são peças fundamentais nessa engrenagem que dissimula as condições sociais em que os produtos são feitos. A artimanha é revestir de significados o ato de consumir e ocultando informações que eventualmente desfavoreça ou desestimule o consumo e fazê-lo se alienar a ponto de acreditar que os produtos anunciados nas propagandas possuem certos atributos que vão garantir satisfação pessoal.
Contudo, isso não explica a quantidade e qualidade das propagandas sexistas veiculadas pela TV brasileira, com benção dos órgãos como CONAR, que deveriam se não fiscalizar, pelo menos chamar atenção para falta de bom senso e mau gosto de algumas peças publicitárias.
O fato é que as agências publicitárias e seus agentes estão aí para vender mercadorias, mas não só isso, pois é preciso acondicioná-las às ideologias dominante, e o machismo (fundamentado no patriarcado) não tem cessado de ser uma ideologia dominante.
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