6 de novembro de 2012

A máquina de reprodução da espécie e a pessoa embrião






Na retórica pró-vida mais radical, o embrião é reconhecido como "pessoa desde a concepção", uma entidade dotada de direitos plenos — muitas vezes, superiores aos da mulher que o gesta. Essa inversão  jurídica reduz a mulher a uma máquina, a um útero com pernas, a uma incubadora com existência irrelevante. O valor simbólico e social do embrião cresce na medida exata em que os direitos da mulher são esvaziados, ignorados ou negados.

É nesse cenário que a metáfora da mulher-autômato ganha força: ela caminha, mas não decide. Ela pensa, mas não escolhe, suas ideias não importam. Sua existência social, política, moral se sujeita a vontade externas. O estado que legisla e decide sobre seu corpo sem consultá-la, a religião que impõe valores sem escutá-la, a sociedade que exige sacrifícios sem lhe oferecer direitos equivalentes.

Tratar o embrião como pessoa jurídica plena enquanto se nega à mulher a condição de sujeito de decisão sobre sua própria vida, saúde e maternidade é instaurar uma hierarquia ontológica na qual o a vida em potencial vale mais do que a existência concreta. É legislar a biologia sem ética. É apagar o sofrimento, o contexto, os direitos reprodutivos e os limites da vida real em nome de uma abstração que conforta crenças, mas perpetua injustiças.

Essa inversão também revela uma profunda misoginia estrutural: o embrião só se torna sujeito porque está dentro de um corpo feminino. A luta, então, não é pela vida em si, mas pelo controle do corpo que gera essa vida. A criminalização do aborto, os obstáculos ao acesso a métodos contraceptivos e à educação sexual, a culpabilização da mulher que recusa a maternidade — tudo isso compõe o mesmo sistema simbólico de dominação que transforma mulheres em engrenagens de uma grande máquina biológica chamada "família", "tradição" ou "nação".

Mas a mulher não é meio. Ela é fim em si mesma. Não é corpo público, nem instrumento estatal, nem canal sagrado da fertilidade. Ela é sujeito de desejos, de decisões, de direitos. Reconhecê-la como tal é romper com essa lógica perversa que idolatra o embrião e desumaniza a gestante.

Enquanto persistir essa máquina ideológica de reprodução da espécie — onde a mulher é a engrenagem descartável e o embrião é a obra-prima —, não haverá justiça reprodutiva, nem liberdade real. Haverá apenas silêncio, culpa, controle e dor.









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