30 de agosto de 2010
Maria Farrar de Bertold Brecht
Maria Farrar, nascida em abril, sem sinais particulares, menor de idade, orfã, raquítica, ao que parece matou um menino da maneira que se segue, sentindo-se sem culpa. Afirma que grávida de dois meses no porão da casa de uma dona tentou abortar com duas injeções dolorosas, diz ela, mas sem resultado. E bebeu pimenta em pó com álcool, mas o efeito foi apenas de purgante. Mas vós, por favor, não deveis vos indignar. Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Seu ventre inchara, agora a olhos vistos e ela própria, criança, ainda crescia. E lhe veio a tal tonteira no meio do ofício das matinas e suou também de angústia aos pés do altar. Mas conservou em segredo o estado em que se achava até que as dores do parto lhe chegaram. Então, tinha acontecido também a ela, assim feiosa, cair em tentação. Mas vós, por favor, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Naquele dia, disse, logo pela manhã, ao lavar as escadas sentiu uma pontada como se fossem alfinetadas na barriga. Mas ainda consegue ocultar sua moléstia e o dia inteirinho, estendendo paninhos, buscava solução. Depois lhe vem à mente que tem que dar à luz e logo sente um aperto no coração. Chegou em casa tarde. Mas vós, por favor, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Chamaram-na enquanto ainda dormia. Tinha caído neve e havia que varrê-la, às onze terminou. Um dia bem comprido. Somente à noite pode parir em paz. E deu à luz, pelo que disse, a um filho mas ela não era como as outras mães. Mas vós, por favor, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Com as últimas forças, ela disse, prosseguindo, dado que no seu quarto o frio era mortal,se arrastou até a privada, e ali, quando não mais se lembra, pariu como pôde quase ao amanhecer. Narra que a esta altura estava transtornadíssima, e meio endurecida e que o garoto, o segurava a custo pois que nevava dentro da latrina. Entre o quarto e a privada o menino prorrompeu em pratos e isso a perturbou de tal maneira, ela disse, que se pôs a socá-lo às cegas, tanto, sem cessar, até o fim da noite. E de manhã o escondeu então no lavatório. Mas vós, por favor, não deveis vos indignar, toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Maria Farrar, nascida em abril, morta no cárcere de Moissen, menina-mãe condenada, quer mostrar a todos o quanto somos frágeis. Vós que parís em leito confortável e chamais bendido vosso ventre inchado, não deveis execrar os fracos e desamparados. Por obséquio, pois, não vos indigneis. Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Bertold Brecht
24 de agosto de 2010
A Autoridade
Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.
Eduardo Galeano.
Diário de Bitita
Quando fui trabalhar na casa do farmacêutico Manoel Magalhães, todos estavam alegres por hospedarem seu sobrinho padre Geraldo. Consideravam-se importantes por terem um padre na família. Ele tinha acabado de chegar de Roma, ia rezar uma missa e todo mundo estavam convidado.
Eu não conhecia a casa. Só conhecia a cozinha e o quintal. Quando começou o reboliço lá dentro, eu só ouvia a palavra: “Sumiu! Sumiu! Só pode ter sido ela”. Eu estava estendendo a roupa quando vi chegarem dois soldados.
-Vamos, vamos, vagabunda! Ladra! Nojenta!
Assustei:
- O que aconteceu?
- Ainda pergunta, cara-de-pau! Você roubou dez mil-réis do padre Geraldo.
Era dez horas da manhã. Logo a notícia circulou.
- A Bitita roubou CEM MIL-RÉIS do padre Geraldo.
- Credo! Ela vai pro inferno!
- Vai mesmo, mas antes de ir pro inferno vai pra cadeia.
Foram avisar minha mãe. É a única pessoa que está sempre presente nas alegrias ou desgraças. Doeu quando ela perguntou:
- Você roubou Bitita?
- Não senhora! Eu nunca vi dez mil-reis.
Meu desejo era conhecer uma cédula de dez mil, duzentos, quinhentos e quem sabe até de um conto de reis. Estas nunca tinha visto. Só conhecia as de cinqüenta , vinte, dez, cinco, dois e um mil-reis.
Fui presa por dois soldados e um sargento. Pensei que eles iam me obrigar a percorrer as ruas com as crianças gritando em coro: “- A Bitita roubou dez mil-reis do padre! A Bitita roubou dez mil-reis do padre!”
Naquele dia compreendi que todo negro deveria esperar por isso. Me levaram pra delegacia. Quando o soldado levantou a mão pra me bater o telefone tocou. Era o padre Geraldo avisando que tinha encontrado o dinheiro, que ele mesmo havia escondido num maço de cigarros. Ele não pediu perdão, só mandou a polícia me soltar pra eu voltar pro trabalho.
(Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita)
6 de agosto de 2010
Oração de Lilith
Em pé, de frente ao espelho, relembre os momento em que você sentiu-se obrigada a fazer o que não queria. Descubra a parte do teu corpo onde o recentimento ou a vergonha se instalou. Então, em voz alta, repita frases que negam a opressão: Não quero! Não dou! Não admito! Não deixo! Não faço! Faça movimentos com as mãos, como se estivesse arrancando do seu corpo a lembrança. Quando sentir que basta, acalme sua mente e seu coração. Respire fundo e se olhe no espelho, diga quem você, o que você deseja e merece. Reafirme seu próprio ser!
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