Sou fã de Elisa Lucinda. Fã mesmo, de verdade, tanto porque a poesia dela me toca muito, quanto porque a acho excelente poeta. Não só eu, gente importante como Nélida Piñon tem a mesma opinião e isso deve significar que ela é boa mesmo, ao contrário do que pensa meu amigo e poeta Ronald Augusto. Aliás, acho que os setores da crítica que torcem o nariz para a poesia de Elisa também o fizeram para Mário Quintana e Adélia Prado. Gente grande, mas muito simples e de linguagem acessível, que se ocupa do comesinho da vida dos viventes para poetar.
Já assisti vários espetáculos de Elisa no Rio e em São Paulo. Certa vez ganhei livro por responder corretamente à pergunta feita pela poeta ao final do espetáculo. No Rio fui duas vezes à Casa Poema, em Botafogo, e lá assisti a espetáculo encenado por Elisa e um grupo de atrizes e atores negros, dentre eles Sandra de Sá e Iléa Ferraz. Prestigiei por dois anos consecutivos o espetáculo de encerramento da turma de alunos da Casa Poema em teatros lindos.
Também assisti uma performance de Elisa em Salvador e dessa feita aconteceu uma situação constrangedora. Um pequeno grupo de mulheres negras, do qual eu não fazia parte, talvez muito animado com a presença de uma atriz e poeta negra magnífica no palco, talvez por não ter costume de frequentar teatros, conversava sem parar. Elisa precisou interromper a atuação e pediu silêncio porque o grupo a estava atrapalhando. Se pudesse, seria um avestruz naquele momento, porque a artista negra no palco e as mulheres da plateia, igualmente me representavam. E representam.
O fato de ser fã-leitora de Elisa e de acompanhá-la sempre que tenho oportunidade, desde que a conheci numa apresentação contratada pelo Conselho da Comunidade Negra ou da Mulher em São Paulo, em algum lugar entre 1990 e 1992, quando divulgava o livro independente A lua que menstrua, me permite afirmar que o público que vai vê-la no teatro é maiormente branco. Como imagino que também sejam seus leitores e fãs, ou seja, quem prestigia e paga pelo valoroso trabalho de Elisa é o público branco. E, para sermos francas, qual é o artista negro bem sucedido no Brasil sustentado pelo público negro? A resposta pode ter muitas nuances e vetores e não me ocuparei deles neste texto. Em contraponto, só pelo exercício de pensar, quantos artistas negros consagrados se ocuparam da formação de público negro em algum momento da carreira? Acho honesto perguntar, como acho necessário dizer também que percebo o quanto a maioria dos artistas negros, comprometidos com o público branco, que, em última instância valoriza seu trabalho e garante seu sustento pela arte, relativiza ou minimiza a crueza do racismo brasileiro.
De toda sorte, este longo preâmbulo se justifica por dois motivos: o primeiro, já enunciado, sou fã-leitora de Elisa. Tenho por ela respeito e admiração imensos e nos parágrafos que se seguirão, discordarei completamente do texto Coração suburbano escrito pela poeta em defesa de Falabella, criador do famigerado programa televisivo Sexo e as negas. Pode ser bobagem, mas parece que eu precisava pedir uma espécie de licença para, na condição de fã, discordar diametralmente de alguém que tenho na melhor conta.
O segundo motivo é que, de antemão, desautorizo qualquer uso do meu texto para atacar as escolhas estéticas da literatura de Elisa Lucinda. Explico, existe uma moçada que a critica porque ela não se posicionaria como um certo modelo de escritora negra imbricado com o ativismo político de combate ao racismo por meio da literatura. Elisa, então, é acusada por muitos de “não ser negra mesmo”. Acho isso uma grande bobagem e defendo seu direito de escrever o que quiser, quando quiser e como quiser, embora saiba que ela não precisa de mim para defendê-la, mas faço esta afirmação, para desautorizar a utilização de meu texto para esse tipo de finalidade.
Ora, se cada um tem o direito de escrever o quiser, não é contraditório que estejamos criticando Falabella? E mais, por que o programa seria famigerado, antes mesmo de ir ao ar?
Cada um tem o direito de escrever o que quiser e a recepção ao texto também tem o direito de reagir e se posicionar como achar mais conveniente.
O texto é famigerado pelo próprio título, Sexo e as negas, exemplarmente discutido por Fabiola Oliveira ao explorar as conexões entre as palavras sexo e negas, em diferentes imaginários, a ver.
No imaginário da mulher negra, historicamente vilipendiada pelo racismo e suas múltiplas manifestações, o estupro de escravizadas por escravizadores é um fantasma acordado pelo título da série televisiva. A hipersexualização de seu corpo também pesa nas costas da mulher negra de maneira incompreensível ao coração suburbano cego ao espectro de solidão e abandono que persegue as mulheres negras comuns.
O imaginário branco, por sua vez, vincula a hipersexualização do corpo negro ao sexo fugaz, pago, superficial, descomprometido e muitas vezes violento. Os sentimentos de amor, respeito, cuidado, cumplicidade, não são associados ao corpo da mulher negra de todo dia, aquela que não usa o botox da resignação para enrigesser os músculos do riso e gargalhar, mesmo quando destruída pela humilhação e dor impostas pelos inofensivos corações suburbanos.
Em última instância, os dois imaginários, o negro banhado pela dor da experiência, e o branco, pautado por estereótipos racistas, desqualificam e reduzem o sentido do sexo pleno quando atrelado às mulheres negras, chamadas por Falabella de negas. Como argumenta Fabíola, “o sexo com a mulher preta é o que permite a violência, o escárnio, a insensibilidade e a relação mercantil. Mulher preta que reclama atenção emocional geralmente é rechaçada e posta no seu lugar de “mula”. O sexo com a mulher preta quase nunca dialoga com a beleza ancestral desse corpo. Nunca é o sexo simbólico: é sempre aquele no escuro dos becos, ou no silêncio do adultério. A mulher preta é sempre a outra, a coadjuvante – protagonista apenas nas questões fisiológicas, com todo o seu aparato emocional e humano desconsiderado. Isso dilacera o imaginário da mulher negra e alimenta perversamente o imaginário branco.”
A defesa de Elisa Lucinda a Falabella, propriamente, de certo ponto de vista, parece-me algo compreensível. Falabella é seu amigo, etc, e, se não formos nós a defender os próprios amigos, quem o fará? E devemos fazê-lo, principalmente quando compartilhamos seu ideário. Essa concordância fica patente na defesa da poeta ao autor global. Entretanto, daí a querer que nós compreendamos e aceitemos as boas intenções do alardeado coração suburbano do moço vai uma distância sideral.
Vejamos: lidar com a não intenção de discriminar do discriminador, à medida que, efetiva e impunemente discrimina, faz parte do rol de afetos correlatos ao racismo brasileiro. E, ironicamente, as práticas discriminatórias bem intencionadas não soam falso como o assassino que declara “eu não tinha intenção de matar, mas, num momento de privação de sentidos, atirei na cabeça da pessoa, ou joguei a criança da janela do quarto andar.” Não! Discriminar racialmente e negar a discriminação faz parte da liturgia do racismo brasileiro, porque, por aqui, a gente é submetida ao absurdo cotidiano de provar que o racismo existe e de demonstrar que determinados comportamentos que, em qualquer lugar do mundo seriam entendidos como manifestações racistas, aqui são absolvidos pela intenção de não discriminar. Havemos de concordar que a suposta intenção de não discriminar tem sido ferramenta eficiente de proteção ao racismo institucional. Tipo, eu evoco num título de programa de TV a lista de estereótipos embasadores da hipersexualização da mulher negra, mas não tenho a intenção de discriminar porque não sou racista (solidariamente gero emprego para artistas negros) e, não sendo racista, como é que posso discriminar alguém? Eu com meu coração grandão e suburbano… vocês é que não sabem rir, não têm humor! Façam-me o favor.
Aliás, por falar em falta de humor dos negros estereotipados e riqueza de humor dos brancos que estereotipam, Luanda Nascimento foi precisa: ” A maioria dos humoristas brancos no Brasil não cumpre o papel do humor: distensionar. Pelo simples fato de não aplicarem a primeira lição do Clown, hiperbolizar e ridicularizar suas próprias idiossincrasias. Ao ridicularizar o preto que é historicamente oprimido no Brasil, não há nenhum distensionamento, apenas reprodução de racismo com “licença poética”. Ao ridicularizar o gordo sendo magro, quando o padrão biotípico é da magreza, não se produz distensão, mas tensão para quem normalmente já é estereotipado. Ao se valer da imagem do morador ‘do asfalto’ (com coração suburbano, acrescento) sobre o que sejam costumes, hábitos e vivências da favela não se produz humor, se produz estereotipia higienista social.”
Poxa, acho desleal que Elisa pergunte, num texto apressado e mal escrito (desalinhado de sua escrita habitual) por que a comunidade negra se cala diante da ausência de negros na TV, porque não é verdade. Faz-se muito barulho. Talvez, antes de o amigo Falabella ser atingido, Elisa não tivesse ouvido o clamor da comunidade negra pela presença (qualificada, protagônica, digna) de atrizes e atores negros na TV, via posts na internet, discussões em bares, salões de beleza, em salas de aula, monografias, dissertações, teses, artigos científicos e de opinião, na literatura e dramaturgia negras, em ações específicas e repetidas do Movimento Negro. Talvez nunca tenha visto a comunidade negra que consome no Saara e na 25 de Março apoiando os modelos negros que exigem espaço profissional nas grandes feiras de moda, como a São Paulo Fashion Week.
Existe um mundo negro pautado pela noção de pertencimento a uma comunidade de destino, que luta por seus indivíduos encrustados e isolados nos mais diversos setores sociopolíticos, simplesmente porque eles integram um só povo, o povo negro, enquanto outros irmãos e irmãs se dissolvem e se perdem no mundo branco. Parece-me que falta a esses negros imiscuídos no mundo branco dizer a que vieram e ter a coragem de pautar a questão racial em seu cotidiano (é chato, cansativo e desgastante) para além do sentimento de agressão injusta aos amigos brancos. A tal comunidade negra, a seu turno, tem bradado há décadas por negros que não estão nem aí para ela e continuará a fazê-lo, porque sabe como o racismo opera e, por isso, não virará as costas aos negros, em nome dos brancos amigos.
Não sou público para a série Sexo e as negas. Não sou profissional de comunicação que por dever de ofício precisa assistir esse tipo de programa, embora tenha dedicado um livro inteiro a discutir, por meio da criação literária, a mídia e as relações raciais ali representadas, especialmente em produções dramatúrgicas globais que assisti atenta, critiquei e elogiei. Sou criadora, escritora e não demonizo a televisão, assisto o que me interessa e meu tempo permite. Quando tenho televisão, é verdade, porque, no momento, tenho tanto trabalho criativo a fazer e tão pouco tempo disponível para realizar, que optei por não ter uma.
Gosto de textos poéticos, com inovação de linguagem, bons diálogos, dramaturgia criativa. Meu tempo é precioso demais para desperdiçar com humor abjeto e diálogos boçais de cristalização do olhar branco sobre a miséria da vida do negro. Definitivamente, esses programas enlatados pela fórmula do riso fácil, do sucesso junto ao público que se acha desprezível e por isso acha graça em se ver desprezado, não me fisga como telespectadora.